quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Réveillon em Copacabana


31 de Dezembro


Queria ir embora, não me deixaram
Quis fugir, esconderam o caminho
Quis um beijo, tirou o batom
Quis viver um corpo, se vestiu de noiva
Quis viver o tempo, o ano acabou.



Cleber Clark de Paiva – 1988


Réveillon em Copacabana



 É difícil. Ano novo. Isto de começar o dia num ano e terminar a noite já em outro, tem que se lhe diga. Caminhos e possibilidades espreitando... sempre havendo chances de se fazer diferente. Mas dentro do peito uma dor me oprime com peso de maciço rochoso, com força de titânica rebentação; ressaca de ondas que batem retumbantes pela dorsal, saltam aos olhos ébrios e repercutem pelo cerebelo, parietal, labirinto... zonzo.


Tento descobrir onde o ano que acaba se perdeu de mim. Tento encontrar as palavras que não foram ditas, na ordem desnecessária de cartas ao chão, no aparato de raivas contidas e agulhas partidas. Tento recuperar a sensatez, uma certa lógica no caos... de horas perdidas, de passos trôpegos, de látegos de fogos, de multidão burburijante em desalinho, de dores sustidas entre a vida e a morte. Sangue.


Como prenúncio, digo que nesta noite viverei a minha dor.


No vagar da memória recente, os fatos se decompõem em estribos de cavalo, roda de carrossel. E como Ouroboros , os acontecimentos voltando para me engolir.


Sei que cheguei até a orla depois de descer pela Santa Clara, passar pelo Beco da fome na Barata Ribeiro com Princesa Isabel, tomar dois uísques e uma água gasosa, e então me encontrar com o calçadão na Av. de Nsra. de Copacabana. Vinha eufórico, meio arlequim, meio Jack Kerouac. Estava em calor solar, em erupção de conturbados sentimentos febris.


Dos borrões de lampejos memoriais que se seguem, vejo luzes, cores; homem camisa branca short amarelo; ambulante cerveja; mulher lisa de face estampas no colo; barcos de oferendas perfumadas – O doiá, Iemanjá! – cantigas, cantos, canções; odores de mar, olores de rosas, ervas de mar e Juana.


Sei que virias estonteante, como sempre és, a me conduzir em pátina branca ao frio mar quente de verão. Onde também depositaríamos esperanças, onde faríamos preces e proporíamos promessas em tempo de novo ano. Depois de ver os fogos, juntaríamos taças em brindes de espumante sortilégio; em gritos de réveillon.


Mas horas se passam, e nada me dizem que me tragam você. Aos poucos arrefece o calor, e o frio se instala dentro de mim.


Perco-me entre pessoas; pernas e braços; em um ir e vir sem razão, a me confundir o senso direcional. Tomo tequila, bebo uísque e sorvo álcool em diferentes formas e cores. Caminho; sou puro instinto de sobrevivência!


Recordo-me de ti... de um esbarrão casual – lembra-se, casa do Vitinho em Petrópolis – ao espetáculo de descobrimos gostos e fatos comuns. Vizinhos bairro Laranjeiras, tardes de domingo Posto 9, Herman Hesse mostrando o conflito entre os impulsos naturais do ser e as contenções espirituais de sua contraparte, Fiorentina no Leme. Us and Them e Brain Damage a nos embalar em sessões enfumaçadas de noites de sexta-feira no baixo Leblon. – “ You lock the door, and throw away the key, there's someone in my head but it's not me...” – Sem nunca termos nos encontrado... sem nunca termos tido percepção da presença física a nos impulsionar para algo além. Até então...


Depois corpos suados, convulsos de gozo, o encantamento de sermos unos, uníssonos. Dias, semanas e meses a me levarem em doce embalo de dança. Como dentro de um poema de Pushkin, sentia-me infinitamente feliz. E você sempre me dizendo de seu desejo de viver, do gosto em tudo igual aos nossos melhores sonhos... e da sua volatilidade. A efemeridade do seu querer suplantando o que se demora para construir – relacionamento – e apenas um segundo para destruir. E eu não querendo ver; sem ter por acreditar; acreditando que te bastaria. Até agora...


Meus passos me levam, sem ter um porque, me fazendo invejar a farândola de foliões e sua plumagem áurea, suas atitudes satânicas e o riso; etílico riso; de quem não tem preocupações a não ser viver este momento. Passagem.


Entro no Alcazar como passageiro desordenado da vida e continuo minha sessão de exorcismo de você em sucessivos copos: altos com gelo, baixos e puros, americanos com limão. Descubro-me mais forte, sem medo de me contagiar penetrando na turba de transeuntes inimigos, porque agora meu único inimigo sou eu mesmo.


A grande hora se aproxima. Há um frenesi que contagia o ar, como um zumbido de caixa de marimbondos. Há um quê de surrealismo no quadro que se pinta, e me faz lembrar de Apollinaire: “Piedade para nós, que exploramos as fronteiras do irreal”: Sou pó, sou pedra, sou o ovo de Colombo, sou espelho partido dentro do banheiro, sou o homem gordo de pernas brancas, sou um barco veleiro ancorado dentro de uma garrafa, sou o mar de Copacabana. E entre tantos grãos de areia, sou um... único, entre tantos. Nunca estive tão cercado de gente. E nunca estive tão só.


Cartola. Digo e percebo que pensei em alta voz; as pessoas próximas me olhando com o desdém concedido aos loucos e aos bêbados.


E penso que deverias vir para ver meus olhos tristonhos e quem sabe sonhar com meus sonhos, por fim. Ou para colocar um fim... nesta dor, nesta solidão.


Não por acaso, em meio aos desvalidos pensamentos, em meio a este mar revolto de rostos, suores, explosões e cascatas de fogos, vejo teu semblante. Estás linda como bem sabias. Simples em sua beleza. Um vestido floral e um colar de contas no pescoço servem de moldura para enaltecer sua magnificência. Mas não estás só. Rodeada de gente jovem e bonita, despreocupadas como reflexos de teu olhar. Olhos que quando se encontram aos meus não dizem nada. Não há assombro, surpresa ou sinal de reconhecimento. Passam por mim como flechas lançadas ao vento além.


Um arrepio profundo percorre meu corpo. E a seguir, tudo em mim fica hirto, frio, pregado ao chão, num pânico mortal. Obra de um segundo, apenas. O justo tempo de você esboçar um tímido sorriso e resoluta caminhar em minha direção. Talvez tivesse bebido além da conta, talvez estivesse imaginando bobagens, talvez...


- Estás perdido? Talvez devesses voltar em teus passos e tentar se achar. – dizes com o mesmo sorriso, onde imagino perceber algo de ironia nas entrelinhas.


Porfio que não estavas onde combináramos. Que me deixaste sozinho. Que perambulava por horas atrás de ti. E então se irritas, diz coisas à toa, berra, bate os pés na areia branca, como se quisesse amedrontar meu espectro. Dizes que não era minha propriedade, que nunca havia me prometido nada. Pois sim! Que se eu pensava diferente, me enganava redondamente. Que queria liberdade; livre para amar outra alma, outro corpo. Que nosso caso de amor teve início, meio e agora... fim. Que ficavas noiva neste primeiro dia do ano novo. Que casarias em breve. Não, não! Não nos veríamos mais.


Me vejo ouvindo os versos de Nelson Gonçalves: “Perto de você eu me calo; tudo penso; nada falo. Tenho medo de chorar...”


Não sabia que razão a levava a proceder daquela maneira. A que propósito me dizia tais coisas. Onde nosso caso de amor teve fim. Sabia apenas da tresloucada dor perfundindo entre minhas células, veias, músculos, ossos, mente e olhos. Até atingirem minhas mãos. Mãos que agora olhavam com ânsia para teu alvo pescoço... alvo de ódio. Vejo então você tão próxima e tão distante. Distanciamento que me impele a frente.


Então dentro de mim me vejo te puxando. Um último abraço, talvez. Mas sem ser dono de mim mesmo, vejo as mãos deslizando sorrateiras, astutas, dissimuladas, ao que os incalculados chamam de insensatez, os incautos de loucura e eu de tragédia humana. Mãos que firmes vão dar a pele que une cabeça e tronco. Mãos que nos aproximam até sentir o pouco do hálito quente que escapa por entre teus lábios entreabertos. E que eu cuido de cobrir com meus próprios lábios. Mãos que espremem querendo separar o conjunto que é você. Vendo a ti com olhos saltados, surpresos, buscando algum entendimento. Buscando um hausto de fôlego. Buscando um grito de socorro. Que agora não pode vir, posto que é tarde. Que buscam aceitar a fatalidade da morte, ainda que seja cedo.


Rodeados destes mares; um que é Copacabana, outro que é o tapete vivo de corpos; e entre a balbúrdia pelo que termina e o que começa, meu crime perpetrado não pode ser visto, ouvido ou percebido. Somos apenas dois unidos em beijo, que senão amor, morte.


E então, fora de mim te vejo partir. Não desta para melhor. Não para o além, fronteira do desconhecido. Mas de volta ao grupo de jovens, que como onda, se voltam e somem no mar de alfombras vivas. Depois do passo, fica meu peito em compasso de espera, olhando tuas costas se perderem. Apenas dentro de mim eu te matei. Meu desvario, minha loucura, gritando para que não morras; mas sufocando-a, mortas está. Estático no mesmo lugar, hirto, frio, pregado ao chão, num real pânico mortal. Sentindo lágrimas secas escorrerem por minh'alma. Sentindo o sangue se derramando dentro de mim. O único crime sendo ter te amado, me entregando sem aval ou seguro que me garantisse sobrevivência.


Penso em me acabar; penso em viver outra vida, em morrer. A vida e a morte, o universo e o tempo, e até a minha própria existência fazem com que eu sinta vontade de me sentar e chorar diante de um sentimento de total incapacidade. Me resta então a angústia da leve percepção de todo um mundo que a razão não explica, a arte vislumbra e as religiões postulam.


A solidão, que chega com o dia que amanhece e com os garis da limpeza, é minha eterna companheira neste primeiro dia do ano. Nada pior do que a solidão matinal. Os loucos não estão mais loucos, os bêbados já dormem, e as luzes e as cores da noite vão se apagando. E não se pode gritar porque não há consolo tão cedo, e não se pode chorar porque agora já é tarde...


É difícil, mas vai. Ano novo. Caminho pela impossibilidade de se chegar a algum lugar. Caminho incontinenti pela pátina branca da praia. Garganta e coração secos, buscam a água do mar, que mesmo salgada, luta para minimizar minha sede de amar. Agora entrego as sombras do alvorecer meu ser resplandecente apagado, que toda noite lhe entregava estrelas. Rogo ao Deus do amanhecer que levante-me dentre os destroços de agulhas partidas, de cartas de amor jogadas ao chão, pois é chegada a hora de cantar. Ajuda-me pois, Cântico de amor, a restabelecer minha integridade, a tripudiar sobre a dor! É verdade que o homem não se limpa de desventuras, não se lava de sangue, não se corrige pelo ódio. É verdade!


E talvez porque os deuses cansaram de fazer escárnio com meu sofrer, ou simplesmente porque assim tinha de ser, sinto uma calma telúrica me invadindo. Sinto minha prece de dor sendo atendida.


E talvez por isso sigo caminhando, acreditando na possibilidade do amor. Tendo a certeza de entendimento entre homem e mulher, logrado sobre o sofrimento, sobre o sangue e sobre as agulhas partidas e cartas perdidas.


Em algum lugar, existe um outro amanhã. Eu sei! Um novo amor me espreita. Penso que tenho muitas coisas a dizer; a alguém que ainda está por vir. É preciso perder-se entre a dor para que subitamente alguém recolha o que é nosso de direito; da rua, da praia, da areia... e tome ternamente esse amor que cultivamos entre as mãos... Somente então seremos verdadeiros poetas e amantes.


Sim. Posso fazer diferente.


Neste outro amanhã viverá o meu amor...



(R. Moran)
*inspirado em mote do amigo Cleber Clark 
Participação na 31º/32º edição sentimento do Projeto Suas Palavras
Tema: Festas
.. da série: Coisas a dizer... para alguém que está por vir.)
* todos os direitos reservados ©



segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O que é Amor Verdadeiro?




O Amor verdadeiro não se compra na esquina. Não é algo de ser achado ao chão; é muito difícil ser encontrado. O Amor verdadeiro é atemporal, incondicional aos fatos mundanos, está acima das convenções, religiões, tratados, leis e dogmas que sejam. Há quem passe toda uma vida tentando alcançá-lo, e por mais que se esforce, ele não vem. Pela simples incapacidade de se vê-lo e reconhecê-lo. Há quem o receba de presente no colo, e por não saber cuidar; ou não querer entender a superioridade do Amor sobre preceitos e coisas do homem; o deixa partir para nunca mais voltar. Há quem tenha no amor uma doentia visão, deturpada por séculos de repressão moral e sexual e estereótipos de um Deus de desamor.

Tenho comigo que o Amor verdadeiro tende a acontecer ciclicamente a cada vida. E as vezes ocorre apenas em um único ciclo. Que não deveria ser desperdiçado. Acreditar que se sabe muito bem do amor é um erro. Não se sabe absolutamente nada, ou quase nada, embora se suspeite algumas vezes em sonho e em outros estados anímicos não sujeitos a controle. Por isso temos tendências a esquecer o que é um Amor verdadeiro. Quem dera não fosse preciso se esquecer deste sentimento, mas que se apropriasse dele tanto quanto possível! No ser humano comum se encerra tudo que há de mundano, de selvagem deturpação e caótica visão sobre o amor. No amor se encerra tudo que há de espiritual, sublime e harmônico em conjunto com a Natureza divina do homem esclarecido.

Não há um único ser humano, nem mesmo o mais rude e ignorante, nem mesmo os idiotas; convenientemente simples; que possam ser explicados em sua essência se eles não tiverem vivido um verdadeiro Amor. O Amor não pode ser dividido, separado entre dois polos, tais como o corpo e o espírito, o santo e o pecador, a justa forma e o descompasso. Ele é uno. E precisa de suas contrapartes para existir, os dois lados da moeda que quando unidos são indivisíveis; um que é o homem, o outro a mulher. Um homem que não necessariamente tenha vindo homem feito dos bastidores, mas que se fez homem no palco da vida. Uma mulher que não necessariamente tenha vinda pronta, mas que se formou sob a certeza da impossibilidade de se existir sozinha e por consciência almeja sua parte nos bens do espírito. Dos extremos que se atraem e se unem.

O Amor não pode ser substituído. Ele é em sua natureza insubstituível. Não pode ser trocado por algo abstrato como a fé ou a religião dos homens. Ao contrário do que muitos acreditam, o Amor não é etéreo. Ele é substância, e por isso precisa de pele, precisa de calor humano, suor. Algumas almas humanas, singularmente dotadas de percepção sensível, podem ver as luzes, as matizes e as cores do amor. E podem também ver como ele é cruelmente rechaçado e atacado por aqueles que pretensamente o buscam, sob argumentos errôneos de certo e errado, de bem e de mal. O Amor não tem essa dualidade, está muito acima disso. E se alguma alma singular chega a exprimir suas “visões”, então imediatamente a maioria a prende, rotula de sandices, chama a ciência em seu auxílio, diagnostica sua loucura e trancafiando-a atrás de muros altos protege a humanidade para que não ouçam o grito de verdade dos lábios deste insano amoroso.

Estas almas especiais sabem que o amor é algo substancioso, visível e palpável. Isto por que eles “veem” através das aparências. Sabem que o amor precisa de um corpo para manifestar sua essência. Só assim ele deixa a dualidade, o comum, a abstração e a trivialidade banal de uma manifestação tosca e sem brilho. Mas há que se ter cuidado! Quando apenas valorizam a forma, se perdem da essência pela ilusão manifesta no metal inferior banhado a ouro. Quando a essência é grande, mas não encontra um corpo oposto que lhe permita manifestar, ele carece de forma. E não tocando, beijando, amando, se perde o melhor de sua manifestação divina, como perola encerrada em ostra perdida no fundo do mar. O que adianta tanta beleza e valor se não há quem lhe veja, lhe toque? Por isso, quando dizemos que o Amor é insubstituível, falamos da não possibilidade de se pretender preenchê-lo com um Amor diverso, como um amor divino, familiar ou com a introspecção estudiosa celibatária de um religioso, asceta, crente ou filósofo.

Por último, cabe ressaltar que o amor verdadeiro não vê apenas o invólucro, não vê a casca, mas toda a autenticidade, sinceridade e beleza interior daquela alma que se apresenta. Vemos o físico, mas sobretudo vemos a luz interior. O amor verdadeiro chega como um passo de dança ou como um relâmpago por detrás de milhares de noites, como movimento de maré que nos inunda aos poucos para que não sufoquemos, até nos deixar plenos de satisfação e amor. A palavra “Sexo” vem do latim secare, que siginifica cortar, separar. Isto explica a divisão entre Homem e Mulher. Na forma de amar, no fazer Amor, ocorre a junçaõ dos frêmitos primordiais dos Eus interiores em uma Unidade, e como nas fusões nucleares dos sóis e estrelas, o amor restitui a nós a sensação do Ser, algo somente perceptível no instante em que nos reintegramos ao Universo no gozo d'alma e não apenas da carne. Esse relâmpago que nos liga entre a Terra e o Céu, que nos une em um único abraço e quebra a regra onde dois corpos passam a habitar o mesmo espaço-tempo.
O amor verdadeiro começa onde não se espera mais nada em troca, onde dá a vida um verdadeiro sentido, onde sabemos que ele não tem um final feliz... porque o verdadeiro amor nunca se esgota, nunca se acaba. Penso que Deus brinca conosco ao nos apresentar muitas pessoas enganadas no amor, para que quando finalmente encontremos nossa contraparte; a metade que nos falta; saibamos estar agradecidos. Agradeço então de antemão, a tu que estás vindo. Neste amanhã descobriremos o verdadeiro sentido de amar, ato sublime que fará de nossas vidas expressão máxima do viver.

(R. Moran)
Nov/11   
.. da série: Coisas a dizer... para alguém que está por vir.)
* todos os direitos reservados ©

sábado, 24 de dezembro de 2011

Conversando com os interiores e outros mais...


Conversando com os interiores e outros mais...



(um conto de natal...)



- Converso com plantas... assim, não é bem uma conversa como convencionalmente se entende. Não abro a boca. Não preciso. E plantas... bem, é óbvio que elas não tem bocas. Desculpe, a Nepenthes attenboroughii tem. Algo parecido com uma enorme boca. E rara; só é encontrada no Monte Vitória nas Filipinas. Tirando esta e algumas outras, realmente elas não tem. A conversa se dá em outro plano, onde a linguagem se dá pela percepção de fragmentos de imagens que vão se consolidando em uma espécie de tabuleiro que surge a minha frente. Eu falopergunto vibrando em violeta. As vezes, no início não dizem nada. Depois, como um quebra-cabeças, as imagens aparentemente desconexas vão se encaixando dentro do tabuleiro numa ordem que é como montar um filme. Que depois é projetado. E que trazem esclarecimentos maiores que a maioria dos homens poderiam ter a me oferecer.


Falo assim, entrecortado e rápido, mas ela não parece prestar atenção. Continua lixando as unhas das mãos enquanto os pés descalços meio que se esfregam sob o sofá carmim. Não ligo. Eu apenas preciso falar, exorcizar meus fantasmas lunares.


- Mas também falo com animais. Talvez por serem mais próximos a nós na escala evolutiva, com eles é diferente. Eu falo através do olhar. Eles me respondem – faço uma pausa, tentando achar as palavras – assim... não sei. Acho que é como letras que se formam em minha cabeça. Também tem imagens – olho por cima do sofá e contemplo a marina que está pendurada na parede – É isso, letras... letras não, palavras... e imagens. Sabe o que um falcão peregrino me disse dias desses?


Ela acabou de lixar as unhas e acendeu um Marlboro. Deu uma tragada funda e soprou a fumaça para cima. Alguns anéis se formam e vão preguiçosamente se desmanchando em direção ao teto. Balanço a cabeça como a desanuviar uma sensação hipnótica que ia me fazendo ficar tonto. Volto a olhar para ela e respondo eu mesmo a pergunta:


- Que um dia destes o homem deixará de existir. Os seres humanos são os únicos animais que caçam outros de sua espécie. Que destroem seus semelhantes. Nem tubarões ou hienas fazem isso. Para o falcão... e para outros animais também... a ordem das coisas esta invertida. Nós somos os animais, eles são os seres racionais.


Estendo a mão para o telefone. Poderia ligar para a moça de boné do apartamento vazio; da varanda com a gaiola vazia – não mais habitada pelo hamster chinês– de frente para a janela onde as gotas de chuva escorrem sem parar. Mas ela não vai atender, porque como disse, o apartamento está vazio. O hamster me contou dias antes que ela ia mudar. Se ao menos ela estivesse ali, talvez ...


- Não adianta discar – disse ela em um tom seco – As linhas foram cortadas.


Não me dou ao trabalho de responder. Na verdade vou ligar para mim mesmo. Descobri que posso fazer isso há alguns anos atrás. Foi em um momento da vida em que estava tão sozinho, tão sozinho, que eu mesmo me recolhi para dentro desta solidão, tão fundo, mas tão fundo, que não sabia mais de mim. Não sabia como voltar. O telefone um dia me salvou.


- Está chamando – digo olhando agora para o teto e observando uma pequena teia de aranha no braço suspensor direito do lustre.


Ela me olha curiosa. Eu percebo com a visão periférica ampliada. Outra coisa que descobri. Quando erguemos os olhos e deixamos ampliar para 180º o campo de observação, apreendemos simultaneamente muito mais coisas com o olhar.


- Ma-as... – ela balbucia – A árvore que caiu... os fios partidos – depois ela parece recuperar o juízo. Balança a cabeça, pensando que é mais uma idiotice minha. Entre tantas... as visões, os sonhos acordados, minhas conversas com bichos e plantas... minhas “viagens” astrais ou pelo mundo.


-Alô? Você demorou a atender – digo sem irritação na voz. Não há por que me irritar comigo mesmo – O que estava fazendo?


(pausa) – OK. E a ideia é boa?


(pausa mais longa) – Talvez seja melhor abordar a questão do amor verdadeiro por outro ângulo, falar sobre a Unidade, sobre o que realmente importa. Mas deve dar um bom texto.


Escuto atentamente o que me respondo. É impressionante como a voz soa nítida, assim. Já tentei conversar comigo sem usar o telefone. Não é que não funcione. Mas é mais truncado, menos audível. A palavra escutada apenas em nosso próprio interior. Na verdade, como deve ser para a maioria dos animais humanos. Porém, com o receptáculo auditivo do telefone colado a orelha, eu realmente posso ouvir uma voz do outro lado da linha. A minha voz. E ela soa coerente e clara:


- … então, acho que podemos terminar com a junção dos frêmitos primordiais dos Eu's interiores em uma Unidade; e como nas fusões nucleares dos sóis e estrelas; o fato do amor restituir a nós a sensação do Ser, algo somente perceptível no instante em que nos reintegramos ao Universo no gozo d'alma e não apenas da carne.


- Ok. E então deve falar de novo do relâmpago, sobre a quebra do mito que diz que dois corpos não podem habitar o mesmo lugar do espaço – aconselho. Neste momento vejo que ela se levanta e vai para a varanda. Melhor assim, posso falar mais a vontade comigo.


- Na verdade, você quem vai escrever – me respondo de fundo – Tá tudo aqui comigo, mas na hora de botar em papel... olhe, sei que não foi por isso que ligou. O que há?


Agora faço uma pausa longa. Não queria, mas não tenho como esconder.


- Eu acho que ainda não acabou... vem algo maior, grande... - digo em voz baixa.


(suspiro profundo) – Não pode ser. A última foi recente... não, não estou pronto para mais destruição. Nem acabei de... nos reconstruir depois do fato recente... eu...


- Você sabia, não é? Sentiu antes de mim? – pergunto triste.


(Pausa longa) – Senti algo sim... mas talvez por que não estivesse pronto ainda, por que não quiséssemos ver... não sei.


- O texto que escrevi... escrevemos. Sobre o réveillon... o personagem éramos nós, não era?


Não respondo do outro lado da linha, de dentro.


- É, eu tive uma melancolia premonitória assim que acabei de escrever – falo para mim mesmo – mas nós... nós e ela... estávamos tão bem. Foi o lance da visão que ela tem da vida, entende? Ela se acha muito prática. Até que no início dava mostras de poder ver. Mas ela tem medo. E mudou subitamente, não deu tempo de fazer nada.


(outro suspiro) A uma espera enervante agora. Liguei por que estou destroçado e não encontro alento nem dentro de mim, onde sempre estive protegido.


- Nunca achamos que fosse acontecer conosco, não é? – digo enfim do outro lado – sabíamos do crescente domínio da cegueira temporal grassando pelo mundo, mas achamos que estaríamos livres. A verdade é que entendíamos o risco quando começamos mas achamos que daríamos conta do recado. Não deu... ela ainda não está pronta.


Agora é minha vez de não dizer nada. Eu estava certo. Sabia do risco, da volatilidade dela, das questões religiosas confusas em sua mente. Mas acreditava que meu amor bastaria, que seria maior do que tudo aquilo. Não foi... ela não estava pronta. O problema é que eu também não estava pronto para perdê-la agora.
 
A porta da sala se abre e outras pessoas entram na sala, com fisionomias perturbadas iguais em tudo; e o tédio de dias seguidos de chuva cobrando seu preço também no tom pálido das peles. Uma delas senta-se no sofá do canto da parede e abre uma mala de contrabaixo, dentro da qual havia uma série de peças de madeira que ela começa a montar. Um segundo; homem; abre uma caixa de papelão marcada com a taça de cristal riscada e um guarda-chuva, e tira dela uma velha pick-up-toca-discos-gradiente. Depois se levanta e vai procurar uma tomada onde possa ligá-la.

- Veja – digo para Eu enquanto olho um púlpito(?) quase pronto – não se preocupe. Estou cansado e acho que faremos... tenho pensado mais de uma vez como Maiakovski... o poema... sabe, por um fim nisso tudo. Mas antes vamos dar nosso último concerto de adeus.

- Você ficou louco! O que você está dizendo?! Você não está pronto... não estamos. – eu grito do outro lado da linha – Vão se os anéis, mas ficam-se os dedos. Você conseguirá outra.... na verdade, essa nem era uma mesmo. Ela é comum, trivial como todas outras. Não vale esse sacrifício...

- Eu pensei que fosse especial... E se não é, acho que na verdade ela não existe, não neste plano. Talvez, indo para outro...

Outros abriram a geladeira. Pegavam um resto de frango pequeno; assassinado assado; e o comiam tirando a pele e jogando em cima da pia.

- VOCÊ NÃO PENSOU NADA! VOCÊ NÃO PENSOU NADA! Quem pensa aqui sou EU. Entendeu?! - grito desesperado do outro lado da linha.

- Você não anda pensando bem – respondo com a voz fria e calma – Lembra que me disse para ligar para Ela? Para quem estaria por vir? Pois bem, não funcionou. Nenhuma voz, nada. E eu fiquei uma meia-hora falando ao telefone... me senti um idiota.

- As coisas não funcionam do mesmo jeito que para nós. Você precisa entender. Veja, eu sei...

- Agora preciso desligar – corto a mim mesmo – Outras pessoas chegaram. Acho que vai haver uma reunião aqui... coisa do tipo.

Eu ainda ouço a mim mesmo tentando falar exasperado, mas minha mão já soltava o telefone do alto, deixando-o cair sobre o aparelho com estrépito. Essa é uma vantagem sobre o Eu; somente eu podia ligar para mim; de fora para dentro.

Percebo que o receptáculo não encaixou no lugar, mas não me importo, não tinha linha mesmo. Vejo que a mulher agora coloca um livro sobre o aparato de madeira enquanto me olha com cara de poucos amigos. De nenhum amigo, para ser sincero. A vitrola já está com um disco no prato e vai começar sua cantinela em breve. Os outros vem da cozinha e começam a achar um lugar para se sentarem. O homem da vitrola, acho que o dirigente, conversa com outro em voz baixa me olhando. Levanto-me e vou para a varanda.

- Quando for morrer, deixo-lhe meu anel fractal. Assim, quando olhar para ele saberá de quantos pedaços é feita minha ausência.

Ela não responde nada. Parece um pouco irritada.

- Então é assim que termina – digo a ela melancólico; muito mais por dentro agora do que a voz deixa transparecer.

- Não tem que terminar o que nem começou. Somos muito diferentes; você é muito viajado, eu sou prática; não acredito em nada dessas coisas... Se você ao menos fosse mais racional – ela diz enfim.

- O que é ser racional? O que é ser prático? O dinheiro traz felicidade? Você é feliz? Ou finge e pensa que é? Será que não percebe que este mundo é um grande Maya, que está te consumindo aos poucos, te privando da verdadeira vida e da luz...

- Isto é real! Bom ou mal, é assim que eu vejo,todo mundo vê, não essas coisas que você diz...

- Toda unanimidade se torna burra. Porque a maioria acredita não quer dizer que seja verdade. Não a conheci assim. Não era desse jeito até alguns dias atrás. É de um egoísmo absurdo. Talvez por isso eu não esteja mais vendo suas luzes; você mesma cuidou de apagá-las.

- Você só fala idiotices, mesmo. Luzes, visões, viagens...– responde com irritação –

Não digo mais nada. Olho para ela e vejo o imenso vazio da alma. Um mundo pequeno e limitado, mas que julga ser o único. E não tenho agora como lhe mostrar. Não tenho mais como lhe ensinar. Nem quero. Dou as costas e saio. Posso ser idiota, mas não sou burro. Sei quando a batalha está perdida. Perdida para algo assim, abstrato, irreal, totalmente em desarmonia com o cosmos, com o amor verdadeiro...

- Meu deus, um homem... ele me mandou tomar no... - diz atônito um homem segurando em pé o telefone perto do ouvido. Mas não completou a frase.

- Você está louco. Desde ontem que os fios estão partidos, você não viu a árvore que caiu na esquina devido a chuva? - Perguntou irritada a mulher da caixa de contrabaixo.

Paro por uns instantes curioso. Olho para ele e não vejo nenhum dom especial. Ele é comum... então como?

- Mas ele... ele estava falando ao telefone – diz apontando para mim – E essa voz...

- Ah, ele! Não sabes que ele é louco...
Bem, não importa, agora não. Abro a porta e saio. A chuva fria entorpece quase imediatamente meu corpo. Não uso nenhuma proteção... todas foram destruídas. A dor que era constante dentro de mim adquire contornos surrealistas e como raízes sanguinárias sinto-as subindo por minhas pernas, enroscando-se no meu sexo, ventre, tórax e começando a me sufocar no pescoço e espremer meu cérebro. Talvez se tivesse ficado ali mais alguns minutos, não precisaria fazer nada, bastava esperar até que o coração parasse de bater. Mas não queria dar a ela esse gosto. E então, como uma sirene de navio obliterado por denso nevoeiro, escuto meu nome sendo chamado da varanda do terceiro andar e algo como:


- Seu anel.... você esqueceu o ANEL no sofá... Espere por favor! Eu tenho que...


A chuva engrossa agora e me cobre magicamente com seu manto. Tudo cessa de imediato, meus sentidos se fecham em copas, inclusive todos sons são engolidos pelo fragor das gotas que se chocam contra o chão, paredes, asfalto, árvores, calhas de telhados e trombam com minhas próprias gotas quentes que saem pelo canto dos olhos. Só não cessa a dor. Esta ao contrário continua aumentando. E gritos desesperados dentro de mim me pedindo para parar. Então caminho mais rápido, caminho como autômato em fábrica de robôs; a cabeça golpeando com som de trovões, onde nem os martelos dos metalúrgicos faziam tanto barulho ao bater. Vou no desvario de quem perdeu o rumo da própria identidade, da casa, da rua, país, mundo.


Caminho por mais de hora, sem realmente ver homens, construções, ruas, cachorro molhado e cabeças de sombrinhas e guarda-chuvas. Somente olhando sem que houvesse modo de impedir ou afastar essa inundação de dor; sem que houvesse nenhuma porta de contenção para conter esta hemorragia para dentro de mim.


Meus passos finalmente me levam ao promontório de onde se pode descortinar a baía. O mirante é íngreme, e a possibilidade da queda abrupta do Eu e de mim se consolidam próximo da hora. Agora existe um silêncio respeitoso em meu peito, misto de terror e admiração. Sempre soube que um dia teria que saltar. Não imaginava que fosse daquela forma. Queria saltar como expressão máxima de um Guerreiro, como prova sublime da transcendência do homem comum. Saltar para cair magicamente de pé, e não despedaçado como eu me encontro agora. Mas para isso sei que é preciso viver intensamente, e só se consegue isso à custa do Eu... não um eu fragmentado, não um eu rudimentarmente desenvolvido. E o que eu vejo quando olho para mim é um homem em pedaços.


Sem saber se estou pronto decido que é a hora mágica. Salto não para morrer, mas para tentar viver de novo. Para cruzar a fresta entre mundos e encontrar inteira minha metade... para então, quem sabe, achar a outra metade de mim que falta e faz falta. Mas sei dos riscos e perigos iminentes de tal ato de desespero.


Maiakovski então surge a meu lado. Não olha para mim diretamente, mas sim descortinando o horizonte. Então diz:


- Por favor, meu caro, nada de sentimentalismos baratos nesta hora! Prestou atenção como a chuva diminui e ao longe se entreabre uma nesga de céu? Isso mesmo, e agora meu impaciente senhor, permita que o sentido deste céu lhe penetre no espírito. Deixe que tranquilize seu coração neste momento sublime de vida ou morte. Veja de novo, ó infeliz, sem zombarias e falsos conceitos de heroísmo. Brilhar para sempre, brilhar como um farol, brilhar com brilho eterno, gente é para brilhar, que tudo mais vá para o inferno, este é meu slogan e o do sol... – recita um de seus poemas.


- Você não fala português, é russo. E morreu há quase cem anos – digo desconcertado.


- Ah, sim. A temporalidade... as impossibilidades. Deverias saber que isto não existe. Ou como saberias que eu sou eu. Não te disses meu nome. Nunca me vistes antes, só lestes.


Sou forçado a perceber sua coerência e minha incongruência. Como poderia saber de fato que ele era Maiakovski? Nem ao menos usava roupas antigas; ao contrário trajava uma calça jeans, uma blusa polo e um mocassim nos pés.


- Mas sim, não temos muito tempo para elucubrações – continua a falar – Então deixe passar por trás o véu deste ridículo e imbecilizante falso amor, a forma distante deste sentimento divino. Veja o raio de sol que brota entre nuvens prenunciando a noite que não tarda a cair. Escolhestes bem o momento. A fresta entre mundos propiciamente se abre nesta hora. Mas estarás tu preparado para tal feito? Saberás saltar? Ouça com atenção, ó infeliz! O senhor tens realmente necessidade de assim fagir? Ou é um capricho tolo de quem acredita ter perdido tudo, quando na verdade nada encontrastes ali naquele amor. Se é que de tal nome o podemos chamar. A vida é assim aqui neste espaço-tempo, e temos de deixá-la ser assim, e se não formos idiotas devemos rir-nos dela. Aprenda a rir e o todo mais, e leve a sério apenas o que mereça ser levado a sério. Amar não é aceitar tudo. Aliás, onde tudo é aceito, desconfio que há falta de amor verdadeiro. Por isso não deixe ninguém invadir teu jardim para não ter o risco da casa arrombada. Mas se ouvires o que gritas dentro de ti, perceberás que tenho razão. Não aceitastes a condição de inanição de uma estéril alma e corpo, e no entanto se mortificas como criança que tomaram o pirulito. Justo? Oh, não meu filho. Aqui tudo é tão falso, tão infernalmente estúpido e errado. Mas necessário, não duvides. E quem sou eu para dar conselhos, não é? Apenas um pobre homem letrado. E não quero que sejas triste, como o poeta que envelhece lendo Maiakovski de conveniência. Por isso estou aqui para te dar força, te dar exemplo. Se achas que essa é a única saída, quem sou eu para contrariá-lo. Mas estejas pronto para falhar, para o aniquilamento. Se a morte for tua companhia no salto, se dela não desprenderes medo, então terás uma chance. E por não querer retardar mais o momento, salto eu na frente.


E antes que tivesse tempo de dizer qualquer coisa, Maiakovski subiu rapidamente no parapeito e saltou com os braços abertos. Sumiu. Pensei ter visto um leve movimento por entre nuvens além, mas nada mais. Então é isso. Não me vejo demovido de meu intento pois a dor que tenho só eu sei, só eu carrego. E é hora de despejá-la para longe em cântaros, ainda que assim jogue fora a mim mesmo. Preparo-me para saltar por minha vez.


- Pular pode não ser uma boa opção agora – diz uma voz atrás de mim.


Viro-me rapidamente... e a moça do boné do apartamento vazio está ali. Estou em pé no parapeito e algo me faz sentir o ridículo do momento.


-Maiakovski... você o viu? Ele estava aqui agora e eu …


- Quem? Não, não vi ninguém. Não há ninguém além de nós dois. Somente loucos como nós para virmos aqui num dia chuvoso como este. Você um pouco mais, eu diria.


Desço do parapeito. Olho em seus olhos e o que vejo é amor, muita ventura, muita perplexidade, muito prazer e muita dor; amores desperdiçados; íntimo devaneio; ardente luxúria; flores castas e delicadas, flores lilases, flores vívidas que logo murcham; presente melancolia; angustioso desfalecimento e esplendor renascente. Estou mudo de sentidos, mudo diante de ângulos crepusculares de uma vida. E ali prevejo perigos, habilidades amorosas insuspeitadas, espantosas e mortais.


- Eu queria ter te ligado mais cedo...


- Você ligou. Por isso estou aqui. Disse que viria para cá e se eu não viesse... pularia. Que homem que nem me conhece seria capaz de saltar de um acidentado? Não sei, nunca soube. Por isso vim... acho que um homem capaz de tal ato de coragem merecia minha atenção.


Agora percebo e me surpreendo. Disse que tinha a vantagem de somente de fora para dentro poder ligar para mim mesmo. Mas descobri que meu Eu interior podia ligar para outros mais que não eu... o homem de pé perplexo e agora a moça.


Sorrio para ela. Penso em mil coisas para dizer. Penso em caminhos, encontros, desencontros, amor, dança, medo, cheiro, passagem, beijo, chuva, contenção, partidas e chegadas, canção e poesia...


- Achei que nunca mais a veria... estava de partida – é tudo que consigo dizer.


- Eu sei, Demian me contou. O hamster... disse que poderias gostar de mim. Mas tínhamos impossibilidades até então. Acho que uma porta se fechou hoje para ti, mas não deverias ignorar uma outra que se abre.


Concordo com a cabeça, com o corpo e com a alma. Então ela também falava com animais. E plantas, será?


- Vamos daqui – continua a falar; uma mecha de fios de luz a escapar sob o boné – Quero saber muito de ti: se já conversou com o espelho, já quis ser bruxo, se passou trote por telefone; se já tomou banho de chuva, roubou beijos, fez juras eternas; se já chorou sentado no chão do banheiro, se já sentiu medo do escuro, se já viu pôr-do-sol cor-de-rosa e alaranjado, se já correu para não deixar alguém chorando... tantos já's... Mas primeiro vamos recolher o pouco de ti que ainda resta, para depois tentarmos colar o Tudo.


E dizendo isso se abaixou e carinhosamente começou a resgatar do chão os fragmentos de mim. Vejo surpreso que de suas mãos se desprendem luzes. Penso que talvez deverias reconsiderar, que deverias acreditar que é possível... Lembro-me que hoje será noite de Natal e decido ver onde esta estrada vai me levar. De qualquer forma, sempre é factível retornar e empreender o salto. Mas só hoje, só por hoje vou me permitir crer que o Amor sempre vence. E talvez no amanhã assim estejas vitorioso. Abaixo-me e começo a ajudar. É quando nossas mãos e almas se tocam.



(R. Moran)
.. da série: Coisas a dizer... para alguém que está por vir.)
*escrito ao som de "Down by the river" - Neil Young
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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Um + um... quando que é Um?!


Um + um... quando que é Um?!

Me ensinaram que um mais um é igual a dois... quero desaprender, quero me desapegar desta ilusão.

Quando abraçado a ti estiver, quero apenas sentir que um mais um é igual a … Um!

(R. Moran)

.. da série: Coisas a dizer... para alguém que está por vir.)
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quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Sob ou sobre... o que digo.


Esclarecimento do Andarilho


Sob ou sobre? Subserviente ou sobrevivente? Dúvidas que movem respostas e giram o mundo.

Que os anjos escrevam salmos sob meu corpo nu agora...

Alguém em especial veio e me perguntou se era sob ou sobre... e existem duas maneiras de se interpretar. E ambas justificam o sob.

A primeira é sob a pele do Homem. O imo, o interior disponibilizado para impressões e sentimentos.

A segunda, bem, a segunda remete a outros textos, outras histórias... requer mais entendimento. Temos dito sobre a importância da Unidade; sobre buscarmos sermos uno no Amor. Se assim pensarmos, sob meu corpo nu ganha novos contornos de corpos. Posto que a Unidade requer homem... e mulher. Então podemos inferir que sob o corpo está a amada, a metade. E é nela que o poeta quer que os anjos escrevam salmos e todos os trechos de música que cantarem entre nuvens...


(E você, é subserviente do mundo ou dele se faz um sobrevivente?) falando baixinho...


(R. Moran)

* remete ao post: http://andarilhomago.blogspot.com/2011/12/sob-meu-corpo-nu.html
 
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Sob meu corpo nu...




Sim, eu poderia abrir as portas que dão para dentro, mas preferi trancafiá-las para que não entrassem nenhum amor bandido; venturas; muita perplexidade; muito prazer e muita dor; amores desperdiçados; íntimo devaneio; ardente luxúria; flores castas e delicadas, flores lilases, flores vívidas que logo murcham; ausente melancólica e angustioso desfalecimento. Para que estivesses mudo de sentidos, mudo diante de ângulos crepusculares de uma vida.


Não deu. Tu viestes - e arrombando as janelas, permitiu que entrassem todos as luzes noturnas, todos os insetos, teu olhar... E ali prevejo perigos, habilidades amorosas insuspeitadas, espantosas e mortais...e esplendor renascente.


Que os anjos escrevam salmos sob meu corpo nu agora...
(R. Moran)


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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

"O Amor requer prática"


(... da série: Coisas a dizer... para alguém que está por vir.)

O amor é sempre um ato de altruísmo. O ato de amar nasce do doar-se, como o carvão nasce do fogo. Cada amor que nasce, surgido da dor e do cativeiro opressivo de um coração que anseia, é uma história com capítulos, prantos, risos, solidão e desencontros. Quero com isso entrar na possessão infinita de tudo que existe. Da necessidade que temos de nos saber amados. E para isso precisamos entender que não devemos buscar o amor; temos que ser o próprio amor.

Os falsos moralistas, os intransigentes secos por dentro e os ditadores religiosos ensandecidos de ódio, buscam o amor para corrompê-lo, queimá-lo e transformarem-no em pó de estrada. Onde os pés caminham, e pisando não sabem a dor que se avizinha em cada passo, em cada lágrima derramada. Os poetas, loucos e amantes o buscam pela beleza, pelo frêmito e pelo gozo. Ama-me a diversidade da vida; a vida que surge de um novo amor. Seu suave colorido, seu ar madrigal de quem já não tem pressa, a fruta madura diferenciada em toda sua latitude. Mas há que se cuidar, posto que o amor é chama, e como tal pode se apagar. É como um cristal fino, de delicadas formas, que no entanto se quebra quando cai. Mas que jamais morre! Podem encarcerá-lo, ter sua face cuspida e escarnecida, podem molestá-lo e arrastá-lo pelas ruas e avenidas, jogado ao alto mar para que se afogue, dar-lhe uma punhalada certeira no peito e uma salva de tiros... e ainda assim ele sai de todos estes episódios reorganizado em suave taça transbordante, ardendo em uma nova chama e ensejando um novo olhar de patética singeleza.

O amor nasce pequeno. Não devemos confundi-lo com a avassaladora paixão dos amantes, com o ímpeto ressonante dos carnavais, com o arroubo de fé dos combalidos em busca do divino. O amor sempre nasce pequeno! E somos sós ao seu nascer, mas desmedidos insaciáveis que somos por natureza, buscamos seu alimento já nos primeiros segundos de vida. E dele não queremos desapegar. Quando não o temos a nosso prazer, sentimo-nos desamparados e – torpes mesquinhos – desiludidos. Por isso dizemos que o amor é também um vício, que como tal necessita tratamento. Mais que isso, entendimento. Não escolhemos amar alguém por suas posses, sua educação, ou elegância, embora estes possam ser seus instrumentos. Não amamos alguém por seu encanto ou beleza, embora ambos sejam seus servidores. Amamos pelo mistério que ele nos traz, pelo cheiro que inebria, pelo sorriso que nos olha e desperta a fragilidade que há em todos nós. Amamos por assim dizer; pela voz que nos cativa; pela paz ou tormento que ele nos traz. A despeito do que dizem os filósofos e os intelectuais, ama-se pelo que o amor tem de indefinível, de indízivel. Mas não de incomensurável... Ele pode ser medido em sua justa forma, na maneira com que nos contempla por trás do espelho. É quando nos deparamos com nossa imagem reflexa e ela nos diz que estamos irremediavelmente apaixonados por alguém. Este é o berço do amor, sua primeira infância.

E com ele vem a crise do nascimento, no começo alarmante e alarmado do terror metafísico de onde brota o manancial da necessidade de se buscar uma identidade, uma face para o amor. O mesmo manancial que deixa escorrer entre pedras o ciúme leitoso, o ardil de egoísta possessão do que não se deve prender. Por que fazemos isso? Porque somos tolos! Procuramos dar sentido ao que não se pode ser explicar, buscamos um novo alvorecer quando ainda não digerimos o crepúsculo de um entardecer sozinhos sentados num banco de praia. Quando queremos que o outro seja igual a nós, quando tudo que precisamos é que justamente ele seja contrário; nossa cara-metade, a outra face da moeda; nossa contraparte a unirmo-nos ao Todo. Nem tanto “venha a nós”, nem demasiado “ao vosso reino”. Mas superado e entendido o ato de nascer, com ele seguimos.

Aos poucos vamos descortinando seus atos, sua trama. E ele se doa a nós, na proporção em que a ele nos entregamos de olhos abertos. Sem medo de mergulhar quarto escuro, sem acepipes desnecessários, sem estampidos de artilharia bruta; ciúme corrompido e resvalo de trevas ditas em calor de discussões.

É o que pensamos como certo, é o queremos mas nem sempre sendo. Simplesmente por não sabermos o que o palco descortinado nos reserva; que personagens e atos nos conduzirão a verdadeira união. E porque o amor não tem razão. Ou ao menos, não a obedece.

Ele acontece a revelia das convenções, dos ditos desditos populares, do que entendemos como certo. Por sua incerteza, ele nos diz como nos consolidarmos através de uma forma muitas vezes cruel, mas eficiente. A nos provocar, ele nos lança em agonia de ventos de agosto; ele consequentemente nos obriga em algum momento a viver a segunda solidão. E sós, temos a oportunidade de olhar o outro, para depois podermos olhar a frente, juntos. E é assim que o amor tem para nos ensinar como lidarmos com nossas próprias deficiências, como superarmos o obstáculo de sermos limitados e limítrofes em nossa visão de mundo. O que nós entendemos como sendo o mundo; sendo o mundo um para cada um. E o amor como um Todo que é, nos dando a possibilidade de “vermos” verdadeiramente pelos olhos da alma. A nos ensaiar para o grande espetáculo da vida. Para com ele crescermos... na dor do crescimento.

Finalmente, chegamos a maturidade adulta. E aqui cabe especial atenção. O amor não tem freios! Ou ao menos, não deveria tê-los. E é correndo furtivo em pátina de areia que ele nos embala com seu acalanto de maré. Uma hora subindo como coluna pitagórica, outra hora esvaziando-se para recolher detritos que elaboramos e inteligentemente descartamos, outra hora de novo subindo para despejar em nossa praia contas de coral, maresia madrigal e conchas acústicas dizendo do profundo do mar que agora habitamos. Por ser desmedido mar, sentimos necessidade de salvaguardas, de botes a remo a deslizar por sua superfície. E quem disse que o amor é seguro? Quem disse que há garantias? Talvez por isso seu fascínio e destemor – seja bem dito – quando não necessariamente compreendido; apenas aceito. Aceito na simplicidade, na forma pura como é. E como em tudo na vida, chegamos a conclusão que o amor requer práticas para amadurecer e se consolidar. Treinos de escola da vida, de campeonato de beijos, de acertos e desacertos, encontros e desencontros, de treinar, treinar... e teimar. Somos teimosos por natureza, mas apenas quando teimamos em insistir em ato de amor é que transformamos defeitos em virtudes. Há quem passe pela vida sem nunca conhecer o sabor de amar e ser amado verdadeiramente. São ocos de vivências de Eros, vazios de concepção de Vênus. Se nesta fase não superarmos nosso desejo de dominar, se não entendermos que somos o problema e a solução encerrados em um só, se não soubermos o que fazer com todo esse sentimento de areias brancas que insistem em extravasar por nossas mãos, um vazio enorme se fará presente, profundo e permanente em nosso imo.

E para que serve tudo isso dito em papel, essa ladainha barroca que abre a boca mas não canta, esse próximo, fundamental e extenso ensaio de amor? Para absolutamente nada! Quisera eu que este meu canto servisse de lenço e espada; que secassem prantos de dor e fossem armas na luta contra o desamor. Mas a vivência do ato de amar é única. É própria de cada ser, e nada do eu disse fará sentido até que tenha cada um por si só feito esta grande viagem. Uma vez singrado os mares, uma vez desbravadas as novas terras em comunhão de corpos; enfrentado monstros marinhos de querelas, piratas algozes de nossos sentimentos; superadas as grandes ondas que insistem em fazer a pique nosso almirantado galeão... e eis que o espetáculo da vida se mostra em sua plenitude. O amor então se faz grande, profundo e permanente!

Hoje me digo maduro; in facto; me digo pronto para amar. Enquanto Homem que sou; que respira, vive e ama; também quero passar pela crise do nascimento, sentir as dores do crescimento, experimentar o delicado do dia, o mistério da noite e o sabor de amar. Diante das primeiras balas que atravessarem minha falsa couraça; quando dela em vez de borbotões de sangue saírem sons de guitarra; quando do meio das ruas de meu mundo começarem a subir correntes de raízes e de sangue rubro de sua boca de beijo a minha colada; saberei me bem treinado. E em seguida verei que desde o norte da solidão fui para o sul, vento austral que a ti me trouxe. Desde então meu caminho junto com o teu caminho. E depois de atravessarmos o mar das intempéries, estaremos já de pé sobre a nova terra. Para então podermos reivindicar a possessão infinita de tudo que nela se abriga. Não mais buscaremos o amor; seremos o próprio amor. Um amor, porém, que requer práticas concretas. Não um amor apenas de palavras, de manifestações vazias de afeto. Que ele seja concreto em sua infinitude, bravo como raiz que teima em crescer, em viver. Flor que violácea, milagrosamente desabroche no inverno, pétala de Salvador Dali, aroma enevoado de copo de neve. O que quer dizer que em sua taça cristalina transbordará a poesia essencial de nossas existências.

E neste novo cenário infinitamente espacial; ao mesmo tempo submarino e subterrâneo; entraremos a conversar em plena luz do dia com nossos fantasmas solares, a penetrar no segredo das galerias que escondem a translucidez do cristal, a determinar as relações esquecidas entre o outono e a primavera, entre o homem e a mulher. Entre a metade que é você, a outra metade sendo eu.

Um novo continente longe das palavras evidentes se levantará na superfície de fogo deste mar. Uma nova construção aparecerá da mais secreta matéria de nossos sentimentos. A atmosfera; ao mesmo tempo luz e sombra; por vezes será iluminada de relâmpagos carregados de fosforescências e assombro. Entre singrar este mar, entre apaziguar suas ondas e espumas, em tocar suas margens misteriosas, entre chegar a estas terras e nomear seu reino, em percorrer toda sua geologia e sua geográfica extensão... estaremos nós.

Dois corpos se amando.

Duas almas se unindo.

Você sendo eu, e eu sendo você.

(R. Moran)
11/11/11

A pedido de Gimenez surgiu “O Amor requer prática”; Este me sugeriu um mote que relacionava a necessidade de treinar e exercitar a prática nas coisas da vida, sobretudo no amor. E o escrevi como uma cartilha, pensando neste alguém que está por vir... 

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