quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

"Um grito no carnaval"


Um grito no carnaval

“Agora eu sei exatamente o que fazer
Bom recomeçar, poder contar com você
Pois eu me lembro de tudo irmão, eu estava lá também
Um homem quando está em paz não quer guerra com ninguém
Eu segurei minhas lágrimas, pois não queria demonstrar a emoção
Já que estava ali só pra observar e aprender um pouco mais sobre a percepção
Eles dizem que é impossível encontrar o amor sem perder a razão
Mas pra quem tem pensamento forte o impossível é só questão de opinião

E disso os loucos sabem
Só os loucos sabem
Disso os loucos sabem
Só os loucos sabem”

Charlie Brown Jr.

Olhou desamparado para a terça-feira gorda escorrendo pela tarde por trás da janela de vidro. E sem cessar, para a roupa de Arlequim sobre a cama, logo abaixo da janela, e depois para os transeuntes bêbados na rua que desfilavam diante de seu camarote sombrio. O que havia se tornado camarote; não sendo mais que seu quarto vazio.
Então, admitiu seu medo. Ninguém viria lhe salvar... Não haveria baile no salão, dança de máscaras, cheiro de suor e bocas coladas. Sobrevivera até ali sustentando-se na superfície onde o ar era respirável, e principalmente onde os sentimentos sentiam apenas o que era normal e corriqueiro sentir. Mas subitamente um novo sentido havia surgido dentro dele, inesperadamente e sem aviso, oras! Sentido com sabor de mar, metálico como lâmina fria, que cortando no peito deixava um gosto salobro na boca e um coração exposto as intempéries. Era um sentimento indefinido de inadequação e de intensa solidão. E que o mergulhara em poço. Não um qualquer, mas um poço dentro do poço do poço do poço. As paredes o envolvendo sorrateiras, o limo nas pedras exalando cheiro de, a umidade da água penetrando n'alma, a água circundando sua cintura... e subindo.
No início não era tão profundo. Na verdade nem sabia que era um poço. Enganara-se ao traduzir as pedras em aconchego de cobertor, o limo em verde esperança, a água em um saciar de sede sem fim. Podia facilmente divisar a luz do sol, logo ali a uma distância de arquear as sobrancelhas e vislumbrar a luz. Mas aos poucos a terra foi cedendo sob seus pés, as paredes do poço encompridando, a água surgindo na canela e a luz ficando rarefeita. Estava irremediavelmente afundado. Não que isso fosse ruim. Ou assim não se achava a princípio. Mas não é ruim estar dentro do poço? Não havia o medo, dor ou a morte? Morrer não doí, a dor não se sente, o medo se acostuma. Ah! Mas no poço haviam as luzes... e eram fantasmagoricamente deslumbrantes, de matizes e colores incomuns. E isto compensava qualquer claustrofóbica sensação que o valha.
Mas então as luzes sumiram. Ou se apagaram, não sabia. Foi do nada, disso ele sabia. E veio lhe fazer companhia a face da solidão. Espectral, não era claramente visível na escuridão que o poço se tornara, mas antes se fazia sentir com seu bafo e sua tutela guardiã. Tentou então escalar as paredes do poço, mas apenas conseguiu deixar as unhas quebradas e as pontas dos dedos em carne viva. Depois tentou se afogar, mas o mergulho no frio líquido apenas fazia a água partir-se em borbulhas etéreas, gotas de vidro e farpas arranhantes. Havia danos, mas não o encontro com a morte. Então apenas deixou-se ficar no fundo do poço, esperando que a sorte ou uma Colombina viesse lhe resgatar.
Porque o homem sozinho não é homem por inteiro. Faltam-lhe partes, faltam-lhe complementos. E disso ele bem sabia. Sentia-se marcado pela lentidão do cansaço – o cansaço dos que esperam indefinidamente por alguém; pela contraparte capaz de fazê-lo se movimentar subitamente para fora do poço com mais determinação. Mas não sem temor, já que há muito havia se habituado a solidão interior das pedras. Se liberto, saberia lidar com a vastidão do mundo? Saberiam acolhê-lo e entendê-lo em sua essência? E enquanto isso a água continuava subindo dentro do poço de sua alma, e sabia que mais hora menos hora haveria de tornar-se tão espessa que o sufocaria; iria oprimi-lo a ponto de não suportar a dor.
Então, por via das dúvidas, resolveu dar o seu último baile de adeus. Um baile onde teria apenas ele como único folião. Vestindo solenemente e de forma compenetrada a fantasia de Arlequim, cantarolou sua última marchinha – Tristeza, por favor vá embora, a minha alma que chora está vendo o meu fim... Bastava uma lâmina contra o peito ou menos; uma simples picada de alfinete. Talvez nem isso, um mero arranhão seria suficiente para deixá-lo em pedaços. Porque estava saturado e cansado, e já no limite das forças, sabia que o fim não tardaria e como um balão que se rompe haveria de explodir. Mas não havia lâmina que o cortasse, não havia um simples alfinete ao seu alcance, nem se arranhar na superfície plástica podia com as unhas quebradas até o toco. Então se desesperou por pensar que pudesse ficar eternamente; ad infinitum; defronte a janela vestido de Arlequim a esperar em vão.
Ficou ali parado algum tempo incapaz de expressar qualquer sentimento; num terror tão espesso; até que fosse premente evidenciá-lo através de um grito. Um grito que então assomou de seu mais profundo interior; a princípio apenas um esgar; ganhou força e intensidade ao se avolumar no peito, subiu pela traqueia, passou pela laringe, ganhou o palato, escorregou pela língua, reverberou entredentes e saltou para a terça-feira de carnaval. Repercutindo pelas paredes musguentas, provocou um abalo sísmico e todo o poço veio abaixo. Pedras, argamassa, poeira, pó, escombros sobre sua cabeça; corpo e peito oprimidos. Então um alarme muito alto soou...
Mas aí... havia luz! Não que as luzes houvessem sumido ou se apagado. Apenas que estava cego depois da contínua escuridão do poço. A vista preguiçosa deixara de enxergar. O poço... bem, cavara com os próprios pés, no remexer frenético de criança birrenta que quer mais: luz, luz, luz. E quanto mais queria mais fundo ia em direção contrária a luz. Mas o poço não era bom? Era, e não era. Assim, acolhia mas tolhia. Por erro próprio. Agora sabia-se sobrevivente; não estava vivo vívido, mas tampouco morto. Tivera ele que destruir um poço para ressurgir no mundo. Se isso era bom ou ruim não sabia ainda. Estava liberto mas sem a segurança das paredes o circundando. Mas então haveria esperanças? E que diabos de alarme era esse que não parava de tocar? Afastou os escombros, levantou-se com dificuldade, bateu o pó da fantasia e viu/ouviu que era a campainha da porta que soava. Arrastou-se até lá e abrindo-a deparou-se com Colombina.
Gritou? - perguntou ela.
Gritei.
(R. Moran)
(da série: Coisas a dizer: para alguém que está por vir...)

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domingo, 19 de fevereiro de 2012

Desabafo...

Desabafo somente por uma noite... apenas por uma noite.

Não quero luxo, nem lixo

meu sonho é ser imortal, meu amor!

Não quero luxo, nem lixo

quero saúde pra gozar no final...”

Rita Lee



Estou muito cansado. De tudo e de todos. De falar e não ser visto, de olhar e não ser ouvido. Porque ajo mais através de gestos, e todos eles me dizem quê. E reajo através dos versos, na defesa de não me permitir a loucura. Não quero ser contaminado com a descrença, não quero me crer como um contaminado que todos evitam. Mas então o que fazer? Quero acreditar num amanhã, quero crer nos homens, quero ter esperanças. Mas insistem em dizer que não há futuro, que nada é belo, que não alimente esperanças como se alimenta peixes com pedras. Se insisto em dizer que já não posso calar a voz do que sinto, do que sou, do que faço; simplesmente me ignoram. Por enquanto... Porque se insistir muito, podem me prender, podem me machucar, pelo simples ato de ser diferente; nunca superior. De enxergar além.

Estou muito sufocado. Por tudo e por todos. De quem mais quero e não vê o jardim; só espinhos; do jardim que vejo e não quer que eu habite,; só transite. Ou diz por outras palavras. Porque o Amor é o que é, e basta. Não necessita de racionalizações, nem de medidas e tampouco de parâmetros. Sofremos porque queremos contextualizá-lo, queremos limitá-lo as coisas mundanas, queremos que seja produto de consumo e descartável. Tudo é demasiado rápido; o avião é rápido, o dia é rápido, o cometa é rápido, o amor é rápido. Temos medo da durabilidade. Porque ela acarreta consciência, responsabilidades com nós mesmos. E nisso somos covardes. Recusamos a nós e castigamos o outro, porque assim nos sentimos melhores. Dizemos coisas que machucam, mesmo dizendo que amamos. Agora já é tarde e eu simplesmente me permito a não querer entender isso; não querer entender os homens. Quero apenas aceitá-los como são, sem alegria ou tristeza. Sobretudo sem dor... mas ainda sei que não, e por isso sofro assim.

Estou muito saturado. Das coisas e dos percalços. Ainda outra noite disse que precisava escrever para fugir da loucura. Descobri que não posso. Não devo fugir da loucura. Porque ela é parte de mim, e nela me insiro para ser um todo. Perguntaram se o que me doía eram os olhos. Olho os homens e só o que vejo é o desamor, máscaras de Viena e relógios caros. Então respondo que o que me doí – a despeito de – são as esperas, a falta das palavras e às vezes quem me entenda. Porque devemos ser práticos e ignorar tudo o que resta. Devemos ter os pés no chão e não ousarmos voar. Voar é com os pássaros, e se alguém começar a voar tudo estará perdido, saberás ser abatido a tiros como pato. O homem perdeu a capacidade de se comover com coisas simples, porque não o comovem levezas. Apenas se valoriza o que é pesado, o que nos consome e por nós é consumido: a solidão, a dor, a poluição, a loucura, o asfalto engolindo o verde e esta coisa suja e perigosa a quem chamam de poetas, quando querem dizer os doidos varridos, os alienados.

Estou muito doente. Por coisas e pelos percalços. Doente da alma, doente da boca, doente do coração. Da alma que sufoca o amor, da boca que desprende poemas insanos, do coração que sangra sem que ninguém veja. Não que este esteja oculto, que há muito rasguei meu peito para que o pulsar não fosse oprimido. Mas porque é feio um peito aberto; um coração batendo e gritando enquanto jorra causa asco. Todos estão muito preocupados olhando o próprio umbigo, então não sobra visão para o nada mais, principalmente as coisas ditas feias. Somos egoístas nos nossos próprios problemas, somos sozinhos porque queremos. Refutamos ajuda, ou não temos há quem pedir porque não percebemos o outro. Curioso é que a gente crê que ser feliz é exatamente o mesmo que ser triste, que amar é sempre o mesmo que machucar, que olhar no espelho d'alma é o mesmo que fecharmos os olhos para o espelho de sorrisos que teima em sorrir dizendo: brinco, mas falo sério!

E mesmo cansado, mesmo sufocado, mesmo saturado, mesmo doente ainda quero crer. Porque onde só se vê obstáculos vejo degraus; onde só se vê problemas, solução. Que sejas então um conjunto de sereias e algas azuis, estrelas marinhas e medusas colossais, que sejas um imenso e desmedido oceano, que sejas vivências e querências, que sejas sonhos e realidade, mas que sejas sobremaneira Uma dentre tantas outras. A única. Por ti aguardo paciente; inteira; na certeza calma das casas dos relógios que inexoravelmente veem os ponteiros avançarem como um rio que corre para o mar. Será quando deixaremos de querer estabelecer limites e freios para o amor e menos doídos nos perceberemos. É quando seremos felizes...



(R. Moran)
(da série: Coisas a dizer: para alguém que está por vir...)

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domingo, 5 de fevereiro de 2012

"Dos passos que damos na escola..."


Dos passos que damos na escola...



Tenho aulas de matérias raras. Na Escola do Caminho aprendo “PS – percepções e sentimentos”; “Poesia, dialética Prosa”; “Desconstrução do mundo – como atravessar paredes sem cavar buracos na alma”; “Um modelo de sobrevivência para respostas e pessoas que nos causam dor” …

Mas do alto encastelado de seus oitenta vívidos anos, a Senhora do Castelo ouve atenta a performance da jovem do outro lado da linha:

- … e a senhora concorre a prêmios semanais de R$10.000,00, a prêmios mensais de R$100.000,00 e ao grande prêmio anual de R$1.000.000,00 em vida, que a senhora pode gastar e ser feliz, para quando descansares no jazigo do Cemitério do Sol, tenhas aproveitado a vida.

A senhora sorri feliz, e de sua boca desprende um cântico, mais que uma resposta:

- Minha linda filha. Eu já tenho tudo que preciso. E já sou feliz com o Tudo que tenho... Quando descansares... bem, quero que me enterrem no jardim... vou renascer em plantas, flores e frutos.

Pelo outro lado da linha brotou um doce sorriso alegre. A aula de “Maturidade e Vivência Feliz” acabava de ganhar mais uma aluna.

Quanto a mim, só restava olhar extasiado a proficiência de tal doutorado...


(R. Moran)
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