Um
grito no carnaval
“Agora eu sei exatamente o que
fazer
Bom recomeçar, poder contar com você
Pois eu me lembro de tudo irmão, eu estava lá também
Um homem quando está em paz não quer guerra com ninguém
Eu segurei minhas lágrimas, pois não queria demonstrar a emoção
Já que estava ali só pra observar e aprender um pouco mais sobre a percepção
Eles dizem que é impossível encontrar o amor sem perder a razão
Mas pra quem tem pensamento forte o impossível é só questão de opinião
Bom recomeçar, poder contar com você
Pois eu me lembro de tudo irmão, eu estava lá também
Um homem quando está em paz não quer guerra com ninguém
Eu segurei minhas lágrimas, pois não queria demonstrar a emoção
Já que estava ali só pra observar e aprender um pouco mais sobre a percepção
Eles dizem que é impossível encontrar o amor sem perder a razão
Mas pra quem tem pensamento forte o impossível é só questão de opinião
E disso os loucos sabem
Só os loucos sabem
Disso os loucos sabem
Só os loucos sabem”
Só os loucos sabem
Disso os loucos sabem
Só os loucos sabem”
Charlie Brown Jr.
Olhou desamparado para a terça-feira gorda escorrendo
pela tarde por trás da janela de vidro. E sem cessar, para a roupa
de Arlequim sobre a cama, logo abaixo da janela, e depois para os
transeuntes bêbados na rua que desfilavam diante de seu camarote
sombrio. O que havia se tornado camarote; não sendo mais que seu
quarto vazio.
Então, admitiu seu medo. Ninguém viria lhe salvar...
Não haveria baile no salão, dança de máscaras, cheiro de suor e
bocas coladas. Sobrevivera até ali sustentando-se na superfície
onde o ar era respirável, e principalmente onde os sentimentos
sentiam apenas o que era normal e corriqueiro sentir. Mas subitamente
um novo sentido havia surgido dentro dele, inesperadamente e sem
aviso, oras! Sentido com sabor de mar, metálico como lâmina fria,
que cortando no peito deixava um gosto salobro na boca e um coração
exposto as intempéries. Era um sentimento indefinido de inadequação
e de intensa solidão. E que o mergulhara em poço. Não um qualquer,
mas um poço dentro do poço do poço do poço. As paredes o
envolvendo sorrateiras, o limo nas pedras exalando cheiro de, a
umidade da água penetrando n'alma, a água circundando sua
cintura... e subindo.
No início não era tão profundo. Na verdade nem sabia
que era um poço. Enganara-se ao traduzir as pedras em aconchego de
cobertor, o limo em verde esperança, a água em um saciar de sede
sem fim. Podia facilmente divisar a luz do sol, logo ali a uma
distância de arquear as sobrancelhas e vislumbrar a luz. Mas aos
poucos a terra foi cedendo sob seus pés, as paredes do poço
encompridando, a água surgindo na canela e a luz ficando rarefeita.
Estava irremediavelmente afundado. Não que isso fosse ruim. Ou assim
não se achava a princípio. Mas não é ruim estar dentro do
poço? Não havia o medo, dor ou a morte? Morrer não doí, a dor
não se sente, o medo se acostuma. Ah! Mas no poço haviam as
luzes... e eram fantasmagoricamente deslumbrantes, de matizes e
colores incomuns. E isto compensava qualquer claustrofóbica sensação
que o valha.
Mas então as luzes sumiram. Ou se apagaram, não
sabia. Foi do nada, disso ele sabia. E veio lhe fazer companhia a
face da solidão. Espectral, não era claramente visível na
escuridão que o poço se tornara, mas antes se fazia sentir com seu
bafo e sua tutela guardiã. Tentou então escalar as paredes do poço,
mas apenas conseguiu deixar as unhas quebradas e as pontas dos dedos em carne viva. Depois
tentou se afogar, mas o mergulho no frio líquido apenas fazia a água
partir-se em borbulhas etéreas, gotas de vidro e farpas arranhantes.
Havia danos, mas não o encontro com a morte. Então apenas deixou-se
ficar no fundo do poço, esperando que a sorte ou uma Colombina
viesse lhe resgatar.
Porque o homem sozinho não é homem por inteiro.
Faltam-lhe partes, faltam-lhe complementos. E disso ele bem sabia.
Sentia-se marcado pela lentidão do cansaço – o cansaço dos que
esperam indefinidamente por alguém; pela contraparte capaz de
fazê-lo se movimentar subitamente para fora do poço com mais
determinação. Mas não sem temor, já que há muito havia se
habituado a solidão interior das pedras. Se liberto, saberia
lidar com a vastidão do mundo? Saberiam acolhê-lo e entendê-lo em
sua essência? E enquanto isso a água continuava subindo dentro
do poço de sua alma, e sabia que mais hora menos hora haveria de
tornar-se tão espessa que o sufocaria; iria oprimi-lo a ponto de não
suportar a dor.
Então, por via das dúvidas, resolveu dar o seu último
baile de adeus. Um baile onde teria apenas ele como único folião.
Vestindo solenemente e de forma compenetrada a fantasia de Arlequim,
cantarolou sua última marchinha – Tristeza, por favor vá
embora, a minha alma que chora está vendo o meu fim... Bastava
uma lâmina contra o peito ou menos; uma simples picada de alfinete.
Talvez nem isso, um mero arranhão seria suficiente para deixá-lo em
pedaços. Porque estava saturado e cansado, e já no limite das
forças, sabia que o fim não tardaria e como um balão que se rompe
haveria de explodir. Mas não havia lâmina que o cortasse, não
havia um simples alfinete ao seu alcance, nem se arranhar na
superfície plástica podia com as unhas quebradas até o toco. Então
se desesperou por pensar que pudesse ficar eternamente; ad
infinitum; defronte a janela
vestido de Arlequim a esperar em vão.
Ficou ali parado algum tempo incapaz de expressar
qualquer sentimento; num terror tão espesso; até que fosse premente
evidenciá-lo através de um grito. Um grito que então assomou de
seu mais profundo interior; a princípio apenas um esgar; ganhou
força e intensidade ao se avolumar no peito, subiu pela traqueia,
passou pela laringe, ganhou o palato, escorregou pela língua,
reverberou entredentes e saltou para a terça-feira de carnaval.
Repercutindo pelas paredes musguentas, provocou um abalo sísmico e
todo o poço veio abaixo. Pedras, argamassa, poeira, pó, escombros
sobre sua cabeça; corpo e peito oprimidos. Então um alarme muito
alto soou...
Mas aí... havia luz! Não que as luzes houvessem
sumido ou se apagado. Apenas que estava cego depois da contínua
escuridão do poço. A vista preguiçosa deixara de enxergar. O
poço... bem, cavara com os próprios pés, no remexer frenético de
criança birrenta que quer mais: luz, luz, luz. E quanto mais queria
mais fundo ia em direção contrária a luz. Mas o poço não era
bom? Era, e não era. Assim, acolhia mas tolhia. Por erro
próprio. Agora sabia-se sobrevivente; não estava vivo vívido, mas
tampouco morto. Tivera ele que
destruir um poço para ressurgir no mundo. Se isso era bom ou
ruim não sabia ainda. Estava liberto mas sem a segurança das
paredes o circundando. Mas então haveria esperanças? E que
diabos de alarme era esse que não parava de tocar? Afastou
os escombros, levantou-se com dificuldade, bateu o pó da fantasia e
viu/ouviu que era a campainha da porta que soava. Arrastou-se até lá
e abrindo-a deparou-se com Colombina.
– Gritou? - perguntou
ela.
– Gritei.
(R. Moran)
(da série: Coisas a dizer: para alguém que está por vir...)
(da série: Coisas a dizer: para alguém que está por vir...)
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