quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Réveillon em Copacabana


31 de Dezembro


Queria ir embora, não me deixaram
Quis fugir, esconderam o caminho
Quis um beijo, tirou o batom
Quis viver um corpo, se vestiu de noiva
Quis viver o tempo, o ano acabou.



Cleber Clark de Paiva – 1988


Réveillon em Copacabana



 É difícil. Ano novo. Isto de começar o dia num ano e terminar a noite já em outro, tem que se lhe diga. Caminhos e possibilidades espreitando... sempre havendo chances de se fazer diferente. Mas dentro do peito uma dor me oprime com peso de maciço rochoso, com força de titânica rebentação; ressaca de ondas que batem retumbantes pela dorsal, saltam aos olhos ébrios e repercutem pelo cerebelo, parietal, labirinto... zonzo.


Tento descobrir onde o ano que acaba se perdeu de mim. Tento encontrar as palavras que não foram ditas, na ordem desnecessária de cartas ao chão, no aparato de raivas contidas e agulhas partidas. Tento recuperar a sensatez, uma certa lógica no caos... de horas perdidas, de passos trôpegos, de látegos de fogos, de multidão burburijante em desalinho, de dores sustidas entre a vida e a morte. Sangue.


Como prenúncio, digo que nesta noite viverei a minha dor.


No vagar da memória recente, os fatos se decompõem em estribos de cavalo, roda de carrossel. E como Ouroboros , os acontecimentos voltando para me engolir.


Sei que cheguei até a orla depois de descer pela Santa Clara, passar pelo Beco da fome na Barata Ribeiro com Princesa Isabel, tomar dois uísques e uma água gasosa, e então me encontrar com o calçadão na Av. de Nsra. de Copacabana. Vinha eufórico, meio arlequim, meio Jack Kerouac. Estava em calor solar, em erupção de conturbados sentimentos febris.


Dos borrões de lampejos memoriais que se seguem, vejo luzes, cores; homem camisa branca short amarelo; ambulante cerveja; mulher lisa de face estampas no colo; barcos de oferendas perfumadas – O doiá, Iemanjá! – cantigas, cantos, canções; odores de mar, olores de rosas, ervas de mar e Juana.


Sei que virias estonteante, como sempre és, a me conduzir em pátina branca ao frio mar quente de verão. Onde também depositaríamos esperanças, onde faríamos preces e proporíamos promessas em tempo de novo ano. Depois de ver os fogos, juntaríamos taças em brindes de espumante sortilégio; em gritos de réveillon.


Mas horas se passam, e nada me dizem que me tragam você. Aos poucos arrefece o calor, e o frio se instala dentro de mim.


Perco-me entre pessoas; pernas e braços; em um ir e vir sem razão, a me confundir o senso direcional. Tomo tequila, bebo uísque e sorvo álcool em diferentes formas e cores. Caminho; sou puro instinto de sobrevivência!


Recordo-me de ti... de um esbarrão casual – lembra-se, casa do Vitinho em Petrópolis – ao espetáculo de descobrimos gostos e fatos comuns. Vizinhos bairro Laranjeiras, tardes de domingo Posto 9, Herman Hesse mostrando o conflito entre os impulsos naturais do ser e as contenções espirituais de sua contraparte, Fiorentina no Leme. Us and Them e Brain Damage a nos embalar em sessões enfumaçadas de noites de sexta-feira no baixo Leblon. – “ You lock the door, and throw away the key, there's someone in my head but it's not me...” – Sem nunca termos nos encontrado... sem nunca termos tido percepção da presença física a nos impulsionar para algo além. Até então...


Depois corpos suados, convulsos de gozo, o encantamento de sermos unos, uníssonos. Dias, semanas e meses a me levarem em doce embalo de dança. Como dentro de um poema de Pushkin, sentia-me infinitamente feliz. E você sempre me dizendo de seu desejo de viver, do gosto em tudo igual aos nossos melhores sonhos... e da sua volatilidade. A efemeridade do seu querer suplantando o que se demora para construir – relacionamento – e apenas um segundo para destruir. E eu não querendo ver; sem ter por acreditar; acreditando que te bastaria. Até agora...


Meus passos me levam, sem ter um porque, me fazendo invejar a farândola de foliões e sua plumagem áurea, suas atitudes satânicas e o riso; etílico riso; de quem não tem preocupações a não ser viver este momento. Passagem.


Entro no Alcazar como passageiro desordenado da vida e continuo minha sessão de exorcismo de você em sucessivos copos: altos com gelo, baixos e puros, americanos com limão. Descubro-me mais forte, sem medo de me contagiar penetrando na turba de transeuntes inimigos, porque agora meu único inimigo sou eu mesmo.


A grande hora se aproxima. Há um frenesi que contagia o ar, como um zumbido de caixa de marimbondos. Há um quê de surrealismo no quadro que se pinta, e me faz lembrar de Apollinaire: “Piedade para nós, que exploramos as fronteiras do irreal”: Sou pó, sou pedra, sou o ovo de Colombo, sou espelho partido dentro do banheiro, sou o homem gordo de pernas brancas, sou um barco veleiro ancorado dentro de uma garrafa, sou o mar de Copacabana. E entre tantos grãos de areia, sou um... único, entre tantos. Nunca estive tão cercado de gente. E nunca estive tão só.


Cartola. Digo e percebo que pensei em alta voz; as pessoas próximas me olhando com o desdém concedido aos loucos e aos bêbados.


E penso que deverias vir para ver meus olhos tristonhos e quem sabe sonhar com meus sonhos, por fim. Ou para colocar um fim... nesta dor, nesta solidão.


Não por acaso, em meio aos desvalidos pensamentos, em meio a este mar revolto de rostos, suores, explosões e cascatas de fogos, vejo teu semblante. Estás linda como bem sabias. Simples em sua beleza. Um vestido floral e um colar de contas no pescoço servem de moldura para enaltecer sua magnificência. Mas não estás só. Rodeada de gente jovem e bonita, despreocupadas como reflexos de teu olhar. Olhos que quando se encontram aos meus não dizem nada. Não há assombro, surpresa ou sinal de reconhecimento. Passam por mim como flechas lançadas ao vento além.


Um arrepio profundo percorre meu corpo. E a seguir, tudo em mim fica hirto, frio, pregado ao chão, num pânico mortal. Obra de um segundo, apenas. O justo tempo de você esboçar um tímido sorriso e resoluta caminhar em minha direção. Talvez tivesse bebido além da conta, talvez estivesse imaginando bobagens, talvez...


- Estás perdido? Talvez devesses voltar em teus passos e tentar se achar. – dizes com o mesmo sorriso, onde imagino perceber algo de ironia nas entrelinhas.


Porfio que não estavas onde combináramos. Que me deixaste sozinho. Que perambulava por horas atrás de ti. E então se irritas, diz coisas à toa, berra, bate os pés na areia branca, como se quisesse amedrontar meu espectro. Dizes que não era minha propriedade, que nunca havia me prometido nada. Pois sim! Que se eu pensava diferente, me enganava redondamente. Que queria liberdade; livre para amar outra alma, outro corpo. Que nosso caso de amor teve início, meio e agora... fim. Que ficavas noiva neste primeiro dia do ano novo. Que casarias em breve. Não, não! Não nos veríamos mais.


Me vejo ouvindo os versos de Nelson Gonçalves: “Perto de você eu me calo; tudo penso; nada falo. Tenho medo de chorar...”


Não sabia que razão a levava a proceder daquela maneira. A que propósito me dizia tais coisas. Onde nosso caso de amor teve fim. Sabia apenas da tresloucada dor perfundindo entre minhas células, veias, músculos, ossos, mente e olhos. Até atingirem minhas mãos. Mãos que agora olhavam com ânsia para teu alvo pescoço... alvo de ódio. Vejo então você tão próxima e tão distante. Distanciamento que me impele a frente.


Então dentro de mim me vejo te puxando. Um último abraço, talvez. Mas sem ser dono de mim mesmo, vejo as mãos deslizando sorrateiras, astutas, dissimuladas, ao que os incalculados chamam de insensatez, os incautos de loucura e eu de tragédia humana. Mãos que firmes vão dar a pele que une cabeça e tronco. Mãos que nos aproximam até sentir o pouco do hálito quente que escapa por entre teus lábios entreabertos. E que eu cuido de cobrir com meus próprios lábios. Mãos que espremem querendo separar o conjunto que é você. Vendo a ti com olhos saltados, surpresos, buscando algum entendimento. Buscando um hausto de fôlego. Buscando um grito de socorro. Que agora não pode vir, posto que é tarde. Que buscam aceitar a fatalidade da morte, ainda que seja cedo.


Rodeados destes mares; um que é Copacabana, outro que é o tapete vivo de corpos; e entre a balbúrdia pelo que termina e o que começa, meu crime perpetrado não pode ser visto, ouvido ou percebido. Somos apenas dois unidos em beijo, que senão amor, morte.


E então, fora de mim te vejo partir. Não desta para melhor. Não para o além, fronteira do desconhecido. Mas de volta ao grupo de jovens, que como onda, se voltam e somem no mar de alfombras vivas. Depois do passo, fica meu peito em compasso de espera, olhando tuas costas se perderem. Apenas dentro de mim eu te matei. Meu desvario, minha loucura, gritando para que não morras; mas sufocando-a, mortas está. Estático no mesmo lugar, hirto, frio, pregado ao chão, num real pânico mortal. Sentindo lágrimas secas escorrerem por minh'alma. Sentindo o sangue se derramando dentro de mim. O único crime sendo ter te amado, me entregando sem aval ou seguro que me garantisse sobrevivência.


Penso em me acabar; penso em viver outra vida, em morrer. A vida e a morte, o universo e o tempo, e até a minha própria existência fazem com que eu sinta vontade de me sentar e chorar diante de um sentimento de total incapacidade. Me resta então a angústia da leve percepção de todo um mundo que a razão não explica, a arte vislumbra e as religiões postulam.


A solidão, que chega com o dia que amanhece e com os garis da limpeza, é minha eterna companheira neste primeiro dia do ano. Nada pior do que a solidão matinal. Os loucos não estão mais loucos, os bêbados já dormem, e as luzes e as cores da noite vão se apagando. E não se pode gritar porque não há consolo tão cedo, e não se pode chorar porque agora já é tarde...


É difícil, mas vai. Ano novo. Caminho pela impossibilidade de se chegar a algum lugar. Caminho incontinenti pela pátina branca da praia. Garganta e coração secos, buscam a água do mar, que mesmo salgada, luta para minimizar minha sede de amar. Agora entrego as sombras do alvorecer meu ser resplandecente apagado, que toda noite lhe entregava estrelas. Rogo ao Deus do amanhecer que levante-me dentre os destroços de agulhas partidas, de cartas de amor jogadas ao chão, pois é chegada a hora de cantar. Ajuda-me pois, Cântico de amor, a restabelecer minha integridade, a tripudiar sobre a dor! É verdade que o homem não se limpa de desventuras, não se lava de sangue, não se corrige pelo ódio. É verdade!


E talvez porque os deuses cansaram de fazer escárnio com meu sofrer, ou simplesmente porque assim tinha de ser, sinto uma calma telúrica me invadindo. Sinto minha prece de dor sendo atendida.


E talvez por isso sigo caminhando, acreditando na possibilidade do amor. Tendo a certeza de entendimento entre homem e mulher, logrado sobre o sofrimento, sobre o sangue e sobre as agulhas partidas e cartas perdidas.


Em algum lugar, existe um outro amanhã. Eu sei! Um novo amor me espreita. Penso que tenho muitas coisas a dizer; a alguém que ainda está por vir. É preciso perder-se entre a dor para que subitamente alguém recolha o que é nosso de direito; da rua, da praia, da areia... e tome ternamente esse amor que cultivamos entre as mãos... Somente então seremos verdadeiros poetas e amantes.


Sim. Posso fazer diferente.


Neste outro amanhã viverá o meu amor...



(R. Moran)
*inspirado em mote do amigo Cleber Clark 
Participação na 31º/32º edição sentimento do Projeto Suas Palavras
Tema: Festas
.. da série: Coisas a dizer... para alguém que está por vir.)
* todos os direitos reservados ©



9 comentários:

  1. Amigo Andarilho;
    ...* * felicidades pra ti, o Ano tá acabando e eu te agradeço por ter se tornado meu amigo muito querido, te gosto!
    Venho sempre te ler, já me tornei fã desse cantinho...Amo!
    Saúde e Paz...muito Amor no teu coração; Mery*(

    ResponderExcluir
  2. Acho que quando a gente se enche de fé, pra esperar algo, esse algo vem cheio de fé,

    Assim seja seu 2012,


    Bjkas

    ResponderExcluir
  3. Lindo, envolvente!
    Um dia para guardar e com certeza, amanhã ressuscitar!!
    Boa noite!

    ResponderExcluir
  4. Olá!
    Feliz Ano Novo! Que 2012 seja maravilhoso para vc.
    Desejo que vc conquiste tudo o que deseja!
    Digo de novo: Adoro seus comentários no meu cantinho ;)

    Beijo grande!

    Felicidades!

    ResponderExcluir
  5. Nossa eu também começo a analisar tudo o que passou, o que não é mais. O que ficou planejado e não foi feito fica pra esse próximo ano, como disseste, novos amores estarão a espreita e amanhã é um novo dia.

    Beijo

    Feliz 2012.

    "Que seja doce"

    ResponderExcluir
  6. Feliz Ano Novo, com muita saúde e muita paz.Tudo novo, de novo.
    Um beijo
    Denise

    ResponderExcluir
  7. Sim, virão...
    Outros amanhãs, outros amores, outras surpresas.

    Que 2012 venha recheado de doçuras para todos nós e que possamos sim, fazer diferente.

    Fica com Deus,

    Um beijo

    ResponderExcluir
  8. Oi Vim agradecer sua visita em meu blog. e lhe desejar um ótimo 2012 para você

    Beijoss e Seguindo também.

    ResponderExcluir
  9. Que lindo!!! O conto é de um lirismo fascinante, mesclado à solitária dor de estar só... Um ciclo que termina ... ou inicia?? O ano está terminando nesta noite ou iniciando em instantes? E o Amor? Terminou... ou cedeu a cena para algum dia um novo amor chegar???
    "Neste outro amanhã, viverá o meu amor" - A mais pura convicção de um poeta... ( Sem palavras pra traduzir...rs)

    Perfeito!

    Beijo grande!

    ResponderExcluir

Obrigado por sua participação. Seja livre para opinar, discordar, dar sugestões ou contribuir para o melhor caminho do Andarilho.

Para mí, solo recorrer los caminõs que tienén corazón...