Conversando
com os interiores e outros mais...
(um conto de natal...)
-
Converso com plantas... assim, não é bem uma conversa como
convencionalmente se entende. Não abro a boca. Não preciso. E
plantas... bem, é óbvio que elas não tem bocas. Desculpe, a
Nepenthes attenboroughii
tem. Algo parecido com uma enorme boca. E rara; só é encontrada no
Monte Vitória nas Filipinas. Tirando esta e algumas outras,
realmente elas não tem. A conversa se dá em outro plano, onde a
linguagem se dá pela percepção de fragmentos de imagens que vão
se consolidando em uma espécie de tabuleiro que surge a minha
frente. Eu falopergunto vibrando em violeta. As vezes, no início
não dizem nada. Depois, como um quebra-cabeças, as imagens
aparentemente desconexas vão se encaixando dentro do tabuleiro numa
ordem que é como montar um filme. Que depois é projetado. E que
trazem esclarecimentos maiores que a maioria dos homens poderiam ter
a me oferecer.
Falo assim, entrecortado e rápido, mas ela não parece
prestar atenção. Continua lixando as unhas das mãos enquanto os
pés descalços meio que se esfregam sob o sofá carmim. Não ligo.
Eu apenas preciso falar, exorcizar meus fantasmas lunares.
- Mas também falo com animais. Talvez por serem mais
próximos a nós na escala evolutiva, com eles é diferente. Eu falo
através do olhar. Eles me respondem – faço uma pausa, tentando
achar as palavras – assim... não sei. Acho que é como letras que
se formam em minha cabeça. Também tem imagens – olho por cima do
sofá e contemplo a marina que está pendurada na parede – É isso,
letras... letras não, palavras... e imagens. Sabe o que um falcão
peregrino me disse dias desses?
Ela acabou de lixar as unhas e acendeu um Marlboro. Deu
uma tragada funda e soprou a fumaça para cima. Alguns anéis se
formam e vão preguiçosamente se desmanchando em direção ao teto.
Balanço a cabeça como a desanuviar uma sensação hipnótica que ia
me fazendo ficar tonto. Volto a olhar para ela e respondo eu mesmo a
pergunta:
- Que um dia destes o homem deixará de existir. Os
seres humanos são os únicos animais que caçam outros de sua
espécie. Que destroem seus semelhantes. Nem tubarões ou hienas
fazem isso. Para o falcão... e para outros animais também... a
ordem das coisas esta invertida. Nós somos os animais, eles são os
seres racionais.
Estendo a mão para o telefone. Poderia ligar para a
moça de boné do apartamento vazio; da varanda com a gaiola vazia –
não mais habitada pelo hamster chinês– de frente para a janela
onde as gotas de chuva escorrem sem parar. Mas ela não vai atender,
porque como disse, o apartamento está vazio. O hamster me contou
dias antes que ela ia mudar. Se ao menos ela estivesse ali, talvez
...
- Não adianta discar – disse ela em um tom seco – As linhas foram
cortadas.
Não me dou ao trabalho de responder. Na verdade vou
ligar para mim mesmo. Descobri que posso fazer isso há alguns anos
atrás. Foi em um momento da vida em que estava tão sozinho, tão
sozinho, que eu mesmo me recolhi para dentro desta solidão, tão
fundo, mas tão fundo, que não sabia mais de mim. Não sabia como
voltar. O telefone um dia me salvou.
- Está chamando – digo olhando agora para o teto e
observando uma pequena teia de aranha no braço suspensor direito do
lustre.
Ela me olha curiosa. Eu percebo com a visão periférica
ampliada. Outra coisa que descobri. Quando erguemos os olhos e
deixamos ampliar para 180º o campo de observação, apreendemos
simultaneamente muito mais coisas com o olhar.
- Ma-as... – ela balbucia – A árvore que caiu...
os fios partidos – depois ela parece recuperar o juízo. Balança a
cabeça, pensando que é mais uma idiotice minha. Entre tantas... as
visões, os sonhos acordados, minhas conversas com bichos e
plantas... minhas “viagens” astrais ou pelo mundo.
-Alô? Você demorou a atender – digo sem irritação
na voz. Não há por que me irritar comigo mesmo – O que estava
fazendo?
(pausa) – OK. E a ideia é boa?
(pausa mais longa) – Talvez seja melhor abordar a
questão do amor verdadeiro por outro ângulo, falar sobre a Unidade,
sobre o que realmente importa. Mas deve dar um bom texto.
Escuto atentamente o que me respondo. É impressionante
como a voz soa nítida, assim. Já tentei conversar comigo sem usar o
telefone. Não é que não funcione. Mas é mais truncado, menos
audível. A palavra escutada apenas em nosso próprio interior. Na
verdade, como deve ser para a maioria dos animais humanos. Porém,
com o receptáculo auditivo do telefone colado a orelha, eu realmente
posso ouvir uma voz do outro lado da linha. A minha voz. E ela soa
coerente e clara:
-
… então, acho que podemos terminar com a junção
dos frêmitos primordiais dos Eu's interiores em uma Unidade; e como
nas fusões nucleares dos sóis e estrelas; o fato do amor restituir
a nós a sensação do Ser, algo somente perceptível no instante em
que nos reintegramos ao Universo no gozo d'alma e não apenas da
carne.
- Ok. E então deve falar de novo do relâmpago, sobre
a quebra do mito que diz que dois corpos não podem habitar o mesmo
lugar do espaço – aconselho. Neste momento vejo que ela se levanta
e vai para a varanda. Melhor assim, posso falar mais a vontade
comigo.
- Na verdade, você quem vai escrever – me respondo
de fundo – Tá tudo aqui comigo, mas na hora de botar em papel...
olhe, sei que não foi por isso que ligou. O que há?
Agora faço uma pausa longa. Não queria, mas não
tenho como esconder.
- Eu acho que ainda não acabou... vem algo maior,
grande... - digo em voz baixa.
(suspiro profundo) – Não pode ser. A última foi
recente... não, não estou pronto para mais destruição. Nem acabei
de... nos reconstruir depois do fato recente... eu...
- Você sabia, não é? Sentiu antes de mim? –
pergunto triste.
(Pausa longa) – Senti algo sim... mas talvez por que
não estivesse pronto ainda, por que não quiséssemos ver... não
sei.
- O texto que escrevi... escrevemos. Sobre o
réveillon... o personagem éramos nós, não era?
Não respondo do outro lado da linha, de dentro.
- É, eu tive uma melancolia premonitória assim que
acabei de escrever – falo para mim mesmo – mas nós... nós e
ela... estávamos tão bem. Foi o lance da visão que ela tem da vida, entende? Ela
se acha muito prática. Até que no início dava mostras de poder
ver. Mas ela tem medo. E mudou subitamente, não deu tempo de fazer
nada.
(outro suspiro) A uma espera enervante agora. Liguei
por que estou destroçado e não encontro alento nem dentro de mim,
onde sempre estive protegido.
- Nunca achamos que fosse acontecer conosco, não é? –
digo enfim do outro lado – sabíamos do crescente domínio da
cegueira temporal grassando pelo mundo, mas achamos que estaríamos
livres. A verdade é que entendíamos o risco quando começamos mas
achamos que daríamos conta do recado. Não deu... ela ainda não
está pronta.
Agora
é minha vez de não dizer nada. Eu
estava certo. Sabia do risco, da volatilidade dela, das questões
religiosas confusas em sua mente. Mas acreditava que meu amor
bastaria, que seria maior do que tudo aquilo. Não foi... ela não
estava pronta. O problema é que eu também não estava pronto para
perdê-la agora.
A porta da sala se abre e outras pessoas entram na sala,
com fisionomias perturbadas iguais em tudo; e o tédio de dias
seguidos de chuva cobrando seu preço também no tom pálido das
peles. Uma delas senta-se no sofá do canto da parede e abre uma mala
de contrabaixo, dentro da qual havia uma série de peças de madeira
que ela começa a montar. Um segundo; homem; abre uma caixa de
papelão marcada com a taça de cristal riscada e um guarda-chuva, e
tira dela uma velha pick-up-toca-discos-gradiente. Depois se levanta
e vai procurar uma tomada onde possa ligá-la.
-
Veja – digo para Eu
enquanto olho um púlpito(?) quase pronto – não se preocupe. Estou
cansado e acho que faremos... tenho pensado mais de uma vez como
Maiakovski... o poema... sabe, por um fim nisso tudo. Mas antes vamos
dar nosso último concerto de adeus.
-
Você ficou louco! O que você está dizendo?! Você não está
pronto... não estamos. – eu grito do outro lado da linha – Vão
se os anéis, mas ficam-se os dedos. Você conseguirá outra.... na
verdade, essa nem era uma
mesmo. Ela é comum, trivial como todas outras. Não vale esse
sacrifício...
- Eu pensei que fosse especial... E se não é, acho que na
verdade ela não existe, não neste plano. Talvez, indo para outro...
Outros abriram a geladeira. Pegavam um resto de frango
pequeno; assassinado assado; e o comiam tirando a pele e jogando em
cima da pia.
- VOCÊ NÃO PENSOU NADA! VOCÊ NÃO PENSOU NADA! Quem
pensa aqui sou EU. Entendeu?! - grito desesperado do outro lado da
linha.
-
Você não anda pensando bem – respondo com a voz fria e calma –
Lembra que me disse para ligar para Ela?
Para quem estaria por vir? Pois bem, não funcionou. Nenhuma voz,
nada. E eu fiquei uma meia-hora falando ao telefone... me senti um
idiota.
- As coisas não funcionam do mesmo jeito que para nós.
Você precisa entender. Veja, eu sei...
- Agora preciso desligar – corto a mim mesmo –
Outras pessoas chegaram. Acho que vai haver uma reunião aqui...
coisa do tipo.
Eu
ainda ouço a mim mesmo tentando falar exasperado, mas minha mão já
soltava o telefone do alto, deixando-o cair sobre o aparelho com
estrépito. Essa é uma vantagem sobre o Eu;
somente eu podia ligar para mim; de fora para dentro.
Percebo que o receptáculo não encaixou no lugar, mas
não me importo, não tinha linha mesmo. Vejo que a mulher agora
coloca um livro sobre o aparato de madeira enquanto me olha com cara
de poucos amigos. De nenhum amigo, para ser sincero. A vitrola já
está com um disco no prato e vai começar sua cantinela em breve. Os
outros vem da cozinha e começam a achar um lugar para se sentarem. O
homem da vitrola, acho que o dirigente, conversa com outro em voz
baixa me olhando. Levanto-me e vou para a varanda.
- Quando for morrer, deixo-lhe meu anel fractal. Assim,
quando olhar para ele saberá de quantos pedaços é feita minha
ausência.
Ela não responde nada. Parece um pouco irritada.
- Então é assim que termina – digo a ela
melancólico; muito mais por dentro agora do que a voz deixa
transparecer.
- Não tem que terminar o que nem começou. Somos muito
diferentes; você é muito viajado, eu sou prática; não acredito em
nada dessas coisas... Se você ao menos fosse mais racional – ela
diz enfim.
-
O que é ser racional? O que é ser prático? O dinheiro traz
felicidade? Você é feliz? Ou finge e pensa que é? Será que não
percebe que este mundo é um grande Maya,
que está te consumindo aos poucos, te privando da verdadeira vida e
da luz...
- Isto é real! Bom ou mal, é assim que eu vejo,todo
mundo vê, não essas coisas que você diz...
- Toda unanimidade se torna burra. Porque a maioria
acredita não quer dizer que seja verdade. Não a conheci assim. Não
era desse jeito até alguns dias atrás. É de um egoísmo absurdo.
Talvez por isso eu não esteja mais vendo suas luzes; você mesma
cuidou de apagá-las.
- Você só fala idiotices, mesmo. Luzes, visões,
viagens...– responde com irritação –
Não digo mais nada. Olho para ela e vejo o imenso
vazio da alma. Um mundo pequeno e limitado, mas que julga ser o
único. E não tenho agora como lhe mostrar. Não tenho mais como lhe
ensinar. Nem quero. Dou as costas e saio. Posso ser idiota, mas não
sou burro. Sei quando a batalha está perdida. Perdida para algo
assim, abstrato, irreal, totalmente em desarmonia com o cosmos, com o
amor verdadeiro...
- Meu deus, um homem... ele me mandou tomar no... - diz
atônito um homem segurando em pé o telefone perto do ouvido. Mas
não completou a frase.
- Você está louco. Desde ontem que os fios estão
partidos, você não viu a árvore que caiu na esquina devido a
chuva? - Perguntou irritada a mulher da caixa de contrabaixo.
Paro por uns instantes curioso. Olho para ele e não
vejo nenhum dom especial. Ele é comum... então como?
- Mas ele... ele estava falando ao telefone – diz
apontando para mim – E essa voz...
- Ah, ele! Não sabes que ele é louco...
Bem, não importa,
agora não. Abro a porta e saio. A chuva fria entorpece quase
imediatamente meu corpo. Não uso nenhuma proteção... todas foram
destruídas. A dor que era constante dentro de mim adquire contornos
surrealistas e como raízes sanguinárias sinto-as subindo por minhas
pernas, enroscando-se no meu sexo, ventre, tórax e começando a me
sufocar no pescoço e espremer meu cérebro. Talvez se tivesse ficado
ali mais alguns minutos, não precisaria fazer nada, bastava esperar
até que o coração parasse de bater. Mas não queria dar a ela esse
gosto. E então, como uma sirene de navio obliterado por denso
nevoeiro, escuto meu nome sendo chamado da varanda do terceiro andar
e algo como:
- Seu anel.... você
esqueceu o ANEL no sofá... Espere por favor! Eu tenho que...
A chuva engrossa
agora e me cobre magicamente com seu manto. Tudo cessa de imediato,
meus sentidos se fecham em copas, inclusive todos sons são engolidos
pelo fragor das gotas que se chocam contra o chão, paredes, asfalto,
árvores, calhas de telhados e trombam com minhas próprias gotas
quentes que saem pelo canto dos olhos. Só não cessa a dor. Esta ao
contrário continua aumentando. E gritos desesperados dentro de mim
me pedindo para parar. Então caminho mais rápido, caminho como
autômato em fábrica de robôs; a cabeça golpeando com som de
trovões, onde nem os martelos dos metalúrgicos faziam tanto barulho
ao bater. Vou no desvario de quem perdeu o rumo da própria
identidade, da casa, da rua, país, mundo.
Caminho por mais de
hora, sem realmente ver homens, construções, ruas, cachorro molhado
e cabeças de sombrinhas e guarda-chuvas. Somente olhando sem que
houvesse modo de impedir ou afastar essa inundação de dor; sem que
houvesse nenhuma porta de contenção para conter esta hemorragia
para dentro de mim.
Meus
passos finalmente me levam ao promontório de onde se pode
descortinar a baía. O mirante é íngreme, e a possibilidade da
queda abrupta do Eu
e de mim se consolidam próximo da hora. Agora existe um silêncio
respeitoso em meu peito, misto de terror e admiração. Sempre soube
que um dia teria que saltar. Não imaginava que fosse daquela forma.
Queria saltar como expressão máxima de um Guerreiro, como prova
sublime da transcendência do homem comum. Saltar para cair
magicamente de pé, e não despedaçado como eu me encontro agora.
Mas para isso sei que é preciso viver intensamente, e só se
consegue isso à custa do Eu... não um eu fragmentado, não um eu
rudimentarmente desenvolvido. E o que eu vejo quando olho para mim é
um homem em pedaços.
Sem saber se estou
pronto decido que é a hora mágica. Salto não para morrer, mas para
tentar viver de novo. Para cruzar a fresta entre mundos e encontrar
inteira minha metade... para então, quem sabe, achar a outra metade
de mim que falta e faz falta. Mas sei dos riscos e perigos iminentes
de tal ato de desespero.
Maiakovski então
surge a meu lado. Não olha para mim diretamente, mas sim
descortinando o horizonte. Então diz:
-
Por favor, meu caro, nada de sentimentalismos baratos nesta hora!
Prestou atenção como a chuva diminui e ao longe se entreabre uma
nesga de céu? Isso mesmo, e agora meu impaciente senhor, permita que
o sentido deste céu lhe penetre no espírito. Deixe que tranquilize
seu coração neste momento sublime de vida ou morte. Veja de novo, ó
infeliz, sem zombarias e falsos conceitos de heroísmo. Brilhar
para sempre, brilhar como um farol, brilhar com brilho eterno, gente
é para brilhar, que tudo mais vá para o inferno, este é meu slogan
e o do sol...
– recita um de seus poemas.
- Você não fala
português, é russo. E morreu há quase cem anos – digo
desconcertado.
- Ah, sim. A
temporalidade... as impossibilidades. Deverias saber que isto não
existe. Ou como saberias que eu sou eu. Não te disses meu nome. Nunca
me vistes antes, só lestes.
Sou forçado a
perceber sua coerência e minha incongruência. Como poderia saber de
fato que ele era Maiakovski? Nem ao menos usava roupas antigas; ao
contrário trajava uma calça jeans, uma blusa polo e um mocassim nos
pés.
- Mas sim, não
temos muito tempo para elucubrações – continua a falar – Então
deixe passar por trás o véu deste ridículo e imbecilizante falso
amor, a forma distante deste sentimento divino. Veja o raio de sol
que brota entre nuvens prenunciando a noite que não tarda a cair.
Escolhestes bem o momento. A fresta entre mundos propiciamente se
abre nesta hora. Mas estarás tu preparado para tal feito? Saberás
saltar? Ouça com atenção, ó infeliz! O senhor tens realmente
necessidade de assim fagir? Ou é um capricho tolo de quem acredita
ter perdido tudo, quando na verdade nada encontrastes ali naquele
amor. Se é que de tal nome o podemos chamar. A vida é assim aqui
neste espaço-tempo, e temos de deixá-la ser assim, e se não formos
idiotas devemos rir-nos dela. Aprenda a rir e o todo mais, e leve a
sério apenas o que mereça ser levado a sério. Amar não é aceitar
tudo. Aliás, onde tudo é aceito, desconfio que há falta de amor
verdadeiro. Por isso não deixe ninguém invadir teu jardim para não
ter o risco da casa arrombada. Mas se ouvires o que gritas dentro de
ti, perceberás que tenho razão. Não aceitastes a condição de
inanição de uma estéril alma e corpo, e no entanto se mortificas
como criança que tomaram o pirulito. Justo? Oh, não meu filho. Aqui
tudo é tão falso, tão infernalmente estúpido e errado. Mas
necessário, não duvides. E quem sou eu para dar conselhos, não é?
Apenas um pobre homem letrado. E não quero que sejas triste, como o
poeta que envelhece lendo Maiakovski de conveniência. Por isso estou
aqui para te dar força, te dar exemplo. Se achas que essa é a única
saída, quem sou eu para contrariá-lo. Mas estejas pronto para
falhar, para o aniquilamento. Se a morte for tua companhia no salto,
se dela não desprenderes medo, então terás uma chance. E por não
querer retardar mais o momento, salto eu na frente.
E antes que tivesse
tempo de dizer qualquer coisa, Maiakovski subiu rapidamente no
parapeito e saltou com os braços abertos. Sumiu. Pensei ter visto um
leve movimento por entre nuvens além, mas nada mais. Então é isso.
Não me vejo demovido de meu intento pois a dor que tenho só eu
sei, só eu carrego. E é hora de despejá-la para longe em cântaros,
ainda que assim jogue fora a mim mesmo. Preparo-me para saltar por
minha vez.
- Pular pode não
ser uma boa opção agora – diz uma voz atrás de mim.
Viro-me
rapidamente... e a moça do boné do apartamento vazio está ali.
Estou em pé no parapeito e algo me faz sentir o ridículo do
momento.
-Maiakovski... você
o viu? Ele estava aqui agora e eu …
- Quem? Não, não
vi ninguém. Não há ninguém além de nós dois. Somente loucos
como nós para virmos aqui num dia chuvoso como este. Você um pouco
mais, eu diria.
Desço do
parapeito. Olho em seus olhos e o que vejo é amor, muita ventura,
muita perplexidade, muito prazer e muita dor; amores desperdiçados;
íntimo devaneio; ardente luxúria; flores castas e delicadas, flores
lilases, flores vívidas que logo murcham; presente melancolia;
angustioso desfalecimento e esplendor renascente. Estou mudo de
sentidos, mudo diante de ângulos crepusculares de uma vida. E ali
prevejo perigos, habilidades amorosas insuspeitadas, espantosas e
mortais.
- Eu queria ter te
ligado mais cedo...
- Você ligou. Por
isso estou aqui. Disse que viria para cá e se eu não viesse...
pularia. Que homem que nem me conhece seria capaz de saltar de um
acidentado? Não sei, nunca soube. Por isso vim... acho que um homem
capaz de tal ato de coragem merecia minha atenção.
Agora percebo e me
surpreendo. Disse que tinha a vantagem de somente de fora para dentro
poder ligar para mim mesmo. Mas descobri que meu Eu interior
podia ligar para outros mais que não eu... o homem de pé
perplexo e agora a moça.
Sorrio para ela.
Penso em mil coisas para dizer. Penso em caminhos, encontros,
desencontros, amor, dança, medo, cheiro, passagem, beijo, chuva,
contenção, partidas e chegadas, canção e poesia...
- Achei que nunca
mais a veria... estava de partida – é tudo que consigo dizer.
- Eu sei, Demian me
contou. O hamster... disse que poderias gostar de mim. Mas tínhamos
impossibilidades até então. Acho que uma porta se fechou hoje para
ti, mas não deverias ignorar uma outra que se abre.
Concordo com a
cabeça, com o corpo e com a alma. Então ela também falava com
animais. E plantas, será?
- Vamos daqui –
continua a falar; uma mecha de fios de luz a escapar sob o boné –
Quero saber muito de ti: se já conversou com o espelho, já quis ser
bruxo, se passou trote por telefone; se já tomou banho de chuva,
roubou beijos, fez juras eternas; se já chorou sentado no chão do
banheiro, se já sentiu medo do escuro, se já viu pôr-do-sol
cor-de-rosa e alaranjado, se já correu para não deixar alguém
chorando... tantos já's... Mas primeiro vamos recolher o
pouco de ti que ainda resta, para depois tentarmos colar o Tudo.
E dizendo isso se
abaixou e carinhosamente começou a resgatar do chão os fragmentos
de mim. Vejo surpreso que de suas mãos se desprendem luzes. Penso
que talvez deverias reconsiderar, que deverias acreditar que é
possível... Lembro-me que hoje será noite de Natal e decido ver
onde esta estrada vai me levar. De qualquer forma, sempre é factível
retornar e empreender o salto. Mas só hoje, só por hoje vou me
permitir crer que o Amor sempre vence. E talvez no amanhã assim
estejas vitorioso. Abaixo-me e começo a ajudar. É quando nossas
mãos e almas se tocam.
(R. Moran)
.. da série: Coisas a dizer... para alguém que está
por vir.)
*escrito ao som de "Down by the river" - Neil Young
*
todos os direitos reservados ©
nossa, que legal.. Sabe que eu adorei quando você disse que ia acreditar que o amor sempre vence, o amanhã não importa, vamos pensar no hoje.
ResponderExcluirBeijo e feliz Natal"
Devaneios deliciosos...
ResponderExcluirFeliz natal!Beijos
Moran, amei " falopergunto vibrando em violeta" somos assim: comunicação imanente... falamos mesmo na magia do silêncio. E mágica é sua escrita.
ResponderExcluirUm feliz Natal poético!
Beijos
Nossa, que mergulho na alma, no eu.........quantos relatos fui indo, indo e aprofundando na leitura, acontecimentos, fatos, ficção........impressionante por demais, consegui ver vários aspéctos, mas ainda por elaborar oque possa ter entendido, oque possa ter pensado,não entender e ou entender demais..........enfim ,muito a se dizer!Mas fascinante e só posso dizer que é literalmente o encontro com o próprio eu... que pra mim é assustador enigmático, porém preciso, para que o resto venha fluuir.
ResponderExcluirBeijos e boa noite!