sábado, 24 de dezembro de 2011

Conversando com os interiores e outros mais...


Conversando com os interiores e outros mais...



(um conto de natal...)



- Converso com plantas... assim, não é bem uma conversa como convencionalmente se entende. Não abro a boca. Não preciso. E plantas... bem, é óbvio que elas não tem bocas. Desculpe, a Nepenthes attenboroughii tem. Algo parecido com uma enorme boca. E rara; só é encontrada no Monte Vitória nas Filipinas. Tirando esta e algumas outras, realmente elas não tem. A conversa se dá em outro plano, onde a linguagem se dá pela percepção de fragmentos de imagens que vão se consolidando em uma espécie de tabuleiro que surge a minha frente. Eu falopergunto vibrando em violeta. As vezes, no início não dizem nada. Depois, como um quebra-cabeças, as imagens aparentemente desconexas vão se encaixando dentro do tabuleiro numa ordem que é como montar um filme. Que depois é projetado. E que trazem esclarecimentos maiores que a maioria dos homens poderiam ter a me oferecer.


Falo assim, entrecortado e rápido, mas ela não parece prestar atenção. Continua lixando as unhas das mãos enquanto os pés descalços meio que se esfregam sob o sofá carmim. Não ligo. Eu apenas preciso falar, exorcizar meus fantasmas lunares.


- Mas também falo com animais. Talvez por serem mais próximos a nós na escala evolutiva, com eles é diferente. Eu falo através do olhar. Eles me respondem – faço uma pausa, tentando achar as palavras – assim... não sei. Acho que é como letras que se formam em minha cabeça. Também tem imagens – olho por cima do sofá e contemplo a marina que está pendurada na parede – É isso, letras... letras não, palavras... e imagens. Sabe o que um falcão peregrino me disse dias desses?


Ela acabou de lixar as unhas e acendeu um Marlboro. Deu uma tragada funda e soprou a fumaça para cima. Alguns anéis se formam e vão preguiçosamente se desmanchando em direção ao teto. Balanço a cabeça como a desanuviar uma sensação hipnótica que ia me fazendo ficar tonto. Volto a olhar para ela e respondo eu mesmo a pergunta:


- Que um dia destes o homem deixará de existir. Os seres humanos são os únicos animais que caçam outros de sua espécie. Que destroem seus semelhantes. Nem tubarões ou hienas fazem isso. Para o falcão... e para outros animais também... a ordem das coisas esta invertida. Nós somos os animais, eles são os seres racionais.


Estendo a mão para o telefone. Poderia ligar para a moça de boné do apartamento vazio; da varanda com a gaiola vazia – não mais habitada pelo hamster chinês– de frente para a janela onde as gotas de chuva escorrem sem parar. Mas ela não vai atender, porque como disse, o apartamento está vazio. O hamster me contou dias antes que ela ia mudar. Se ao menos ela estivesse ali, talvez ...


- Não adianta discar – disse ela em um tom seco – As linhas foram cortadas.


Não me dou ao trabalho de responder. Na verdade vou ligar para mim mesmo. Descobri que posso fazer isso há alguns anos atrás. Foi em um momento da vida em que estava tão sozinho, tão sozinho, que eu mesmo me recolhi para dentro desta solidão, tão fundo, mas tão fundo, que não sabia mais de mim. Não sabia como voltar. O telefone um dia me salvou.


- Está chamando – digo olhando agora para o teto e observando uma pequena teia de aranha no braço suspensor direito do lustre.


Ela me olha curiosa. Eu percebo com a visão periférica ampliada. Outra coisa que descobri. Quando erguemos os olhos e deixamos ampliar para 180º o campo de observação, apreendemos simultaneamente muito mais coisas com o olhar.


- Ma-as... – ela balbucia – A árvore que caiu... os fios partidos – depois ela parece recuperar o juízo. Balança a cabeça, pensando que é mais uma idiotice minha. Entre tantas... as visões, os sonhos acordados, minhas conversas com bichos e plantas... minhas “viagens” astrais ou pelo mundo.


-Alô? Você demorou a atender – digo sem irritação na voz. Não há por que me irritar comigo mesmo – O que estava fazendo?


(pausa) – OK. E a ideia é boa?


(pausa mais longa) – Talvez seja melhor abordar a questão do amor verdadeiro por outro ângulo, falar sobre a Unidade, sobre o que realmente importa. Mas deve dar um bom texto.


Escuto atentamente o que me respondo. É impressionante como a voz soa nítida, assim. Já tentei conversar comigo sem usar o telefone. Não é que não funcione. Mas é mais truncado, menos audível. A palavra escutada apenas em nosso próprio interior. Na verdade, como deve ser para a maioria dos animais humanos. Porém, com o receptáculo auditivo do telefone colado a orelha, eu realmente posso ouvir uma voz do outro lado da linha. A minha voz. E ela soa coerente e clara:


- … então, acho que podemos terminar com a junção dos frêmitos primordiais dos Eu's interiores em uma Unidade; e como nas fusões nucleares dos sóis e estrelas; o fato do amor restituir a nós a sensação do Ser, algo somente perceptível no instante em que nos reintegramos ao Universo no gozo d'alma e não apenas da carne.


- Ok. E então deve falar de novo do relâmpago, sobre a quebra do mito que diz que dois corpos não podem habitar o mesmo lugar do espaço – aconselho. Neste momento vejo que ela se levanta e vai para a varanda. Melhor assim, posso falar mais a vontade comigo.


- Na verdade, você quem vai escrever – me respondo de fundo – Tá tudo aqui comigo, mas na hora de botar em papel... olhe, sei que não foi por isso que ligou. O que há?


Agora faço uma pausa longa. Não queria, mas não tenho como esconder.


- Eu acho que ainda não acabou... vem algo maior, grande... - digo em voz baixa.


(suspiro profundo) – Não pode ser. A última foi recente... não, não estou pronto para mais destruição. Nem acabei de... nos reconstruir depois do fato recente... eu...


- Você sabia, não é? Sentiu antes de mim? – pergunto triste.


(Pausa longa) – Senti algo sim... mas talvez por que não estivesse pronto ainda, por que não quiséssemos ver... não sei.


- O texto que escrevi... escrevemos. Sobre o réveillon... o personagem éramos nós, não era?


Não respondo do outro lado da linha, de dentro.


- É, eu tive uma melancolia premonitória assim que acabei de escrever – falo para mim mesmo – mas nós... nós e ela... estávamos tão bem. Foi o lance da visão que ela tem da vida, entende? Ela se acha muito prática. Até que no início dava mostras de poder ver. Mas ela tem medo. E mudou subitamente, não deu tempo de fazer nada.


(outro suspiro) A uma espera enervante agora. Liguei por que estou destroçado e não encontro alento nem dentro de mim, onde sempre estive protegido.


- Nunca achamos que fosse acontecer conosco, não é? – digo enfim do outro lado – sabíamos do crescente domínio da cegueira temporal grassando pelo mundo, mas achamos que estaríamos livres. A verdade é que entendíamos o risco quando começamos mas achamos que daríamos conta do recado. Não deu... ela ainda não está pronta.


Agora é minha vez de não dizer nada. Eu estava certo. Sabia do risco, da volatilidade dela, das questões religiosas confusas em sua mente. Mas acreditava que meu amor bastaria, que seria maior do que tudo aquilo. Não foi... ela não estava pronta. O problema é que eu também não estava pronto para perdê-la agora.
 
A porta da sala se abre e outras pessoas entram na sala, com fisionomias perturbadas iguais em tudo; e o tédio de dias seguidos de chuva cobrando seu preço também no tom pálido das peles. Uma delas senta-se no sofá do canto da parede e abre uma mala de contrabaixo, dentro da qual havia uma série de peças de madeira que ela começa a montar. Um segundo; homem; abre uma caixa de papelão marcada com a taça de cristal riscada e um guarda-chuva, e tira dela uma velha pick-up-toca-discos-gradiente. Depois se levanta e vai procurar uma tomada onde possa ligá-la.

- Veja – digo para Eu enquanto olho um púlpito(?) quase pronto – não se preocupe. Estou cansado e acho que faremos... tenho pensado mais de uma vez como Maiakovski... o poema... sabe, por um fim nisso tudo. Mas antes vamos dar nosso último concerto de adeus.

- Você ficou louco! O que você está dizendo?! Você não está pronto... não estamos. – eu grito do outro lado da linha – Vão se os anéis, mas ficam-se os dedos. Você conseguirá outra.... na verdade, essa nem era uma mesmo. Ela é comum, trivial como todas outras. Não vale esse sacrifício...

- Eu pensei que fosse especial... E se não é, acho que na verdade ela não existe, não neste plano. Talvez, indo para outro...

Outros abriram a geladeira. Pegavam um resto de frango pequeno; assassinado assado; e o comiam tirando a pele e jogando em cima da pia.

- VOCÊ NÃO PENSOU NADA! VOCÊ NÃO PENSOU NADA! Quem pensa aqui sou EU. Entendeu?! - grito desesperado do outro lado da linha.

- Você não anda pensando bem – respondo com a voz fria e calma – Lembra que me disse para ligar para Ela? Para quem estaria por vir? Pois bem, não funcionou. Nenhuma voz, nada. E eu fiquei uma meia-hora falando ao telefone... me senti um idiota.

- As coisas não funcionam do mesmo jeito que para nós. Você precisa entender. Veja, eu sei...

- Agora preciso desligar – corto a mim mesmo – Outras pessoas chegaram. Acho que vai haver uma reunião aqui... coisa do tipo.

Eu ainda ouço a mim mesmo tentando falar exasperado, mas minha mão já soltava o telefone do alto, deixando-o cair sobre o aparelho com estrépito. Essa é uma vantagem sobre o Eu; somente eu podia ligar para mim; de fora para dentro.

Percebo que o receptáculo não encaixou no lugar, mas não me importo, não tinha linha mesmo. Vejo que a mulher agora coloca um livro sobre o aparato de madeira enquanto me olha com cara de poucos amigos. De nenhum amigo, para ser sincero. A vitrola já está com um disco no prato e vai começar sua cantinela em breve. Os outros vem da cozinha e começam a achar um lugar para se sentarem. O homem da vitrola, acho que o dirigente, conversa com outro em voz baixa me olhando. Levanto-me e vou para a varanda.

- Quando for morrer, deixo-lhe meu anel fractal. Assim, quando olhar para ele saberá de quantos pedaços é feita minha ausência.

Ela não responde nada. Parece um pouco irritada.

- Então é assim que termina – digo a ela melancólico; muito mais por dentro agora do que a voz deixa transparecer.

- Não tem que terminar o que nem começou. Somos muito diferentes; você é muito viajado, eu sou prática; não acredito em nada dessas coisas... Se você ao menos fosse mais racional – ela diz enfim.

- O que é ser racional? O que é ser prático? O dinheiro traz felicidade? Você é feliz? Ou finge e pensa que é? Será que não percebe que este mundo é um grande Maya, que está te consumindo aos poucos, te privando da verdadeira vida e da luz...

- Isto é real! Bom ou mal, é assim que eu vejo,todo mundo vê, não essas coisas que você diz...

- Toda unanimidade se torna burra. Porque a maioria acredita não quer dizer que seja verdade. Não a conheci assim. Não era desse jeito até alguns dias atrás. É de um egoísmo absurdo. Talvez por isso eu não esteja mais vendo suas luzes; você mesma cuidou de apagá-las.

- Você só fala idiotices, mesmo. Luzes, visões, viagens...– responde com irritação –

Não digo mais nada. Olho para ela e vejo o imenso vazio da alma. Um mundo pequeno e limitado, mas que julga ser o único. E não tenho agora como lhe mostrar. Não tenho mais como lhe ensinar. Nem quero. Dou as costas e saio. Posso ser idiota, mas não sou burro. Sei quando a batalha está perdida. Perdida para algo assim, abstrato, irreal, totalmente em desarmonia com o cosmos, com o amor verdadeiro...

- Meu deus, um homem... ele me mandou tomar no... - diz atônito um homem segurando em pé o telefone perto do ouvido. Mas não completou a frase.

- Você está louco. Desde ontem que os fios estão partidos, você não viu a árvore que caiu na esquina devido a chuva? - Perguntou irritada a mulher da caixa de contrabaixo.

Paro por uns instantes curioso. Olho para ele e não vejo nenhum dom especial. Ele é comum... então como?

- Mas ele... ele estava falando ao telefone – diz apontando para mim – E essa voz...

- Ah, ele! Não sabes que ele é louco...
Bem, não importa, agora não. Abro a porta e saio. A chuva fria entorpece quase imediatamente meu corpo. Não uso nenhuma proteção... todas foram destruídas. A dor que era constante dentro de mim adquire contornos surrealistas e como raízes sanguinárias sinto-as subindo por minhas pernas, enroscando-se no meu sexo, ventre, tórax e começando a me sufocar no pescoço e espremer meu cérebro. Talvez se tivesse ficado ali mais alguns minutos, não precisaria fazer nada, bastava esperar até que o coração parasse de bater. Mas não queria dar a ela esse gosto. E então, como uma sirene de navio obliterado por denso nevoeiro, escuto meu nome sendo chamado da varanda do terceiro andar e algo como:


- Seu anel.... você esqueceu o ANEL no sofá... Espere por favor! Eu tenho que...


A chuva engrossa agora e me cobre magicamente com seu manto. Tudo cessa de imediato, meus sentidos se fecham em copas, inclusive todos sons são engolidos pelo fragor das gotas que se chocam contra o chão, paredes, asfalto, árvores, calhas de telhados e trombam com minhas próprias gotas quentes que saem pelo canto dos olhos. Só não cessa a dor. Esta ao contrário continua aumentando. E gritos desesperados dentro de mim me pedindo para parar. Então caminho mais rápido, caminho como autômato em fábrica de robôs; a cabeça golpeando com som de trovões, onde nem os martelos dos metalúrgicos faziam tanto barulho ao bater. Vou no desvario de quem perdeu o rumo da própria identidade, da casa, da rua, país, mundo.


Caminho por mais de hora, sem realmente ver homens, construções, ruas, cachorro molhado e cabeças de sombrinhas e guarda-chuvas. Somente olhando sem que houvesse modo de impedir ou afastar essa inundação de dor; sem que houvesse nenhuma porta de contenção para conter esta hemorragia para dentro de mim.


Meus passos finalmente me levam ao promontório de onde se pode descortinar a baía. O mirante é íngreme, e a possibilidade da queda abrupta do Eu e de mim se consolidam próximo da hora. Agora existe um silêncio respeitoso em meu peito, misto de terror e admiração. Sempre soube que um dia teria que saltar. Não imaginava que fosse daquela forma. Queria saltar como expressão máxima de um Guerreiro, como prova sublime da transcendência do homem comum. Saltar para cair magicamente de pé, e não despedaçado como eu me encontro agora. Mas para isso sei que é preciso viver intensamente, e só se consegue isso à custa do Eu... não um eu fragmentado, não um eu rudimentarmente desenvolvido. E o que eu vejo quando olho para mim é um homem em pedaços.


Sem saber se estou pronto decido que é a hora mágica. Salto não para morrer, mas para tentar viver de novo. Para cruzar a fresta entre mundos e encontrar inteira minha metade... para então, quem sabe, achar a outra metade de mim que falta e faz falta. Mas sei dos riscos e perigos iminentes de tal ato de desespero.


Maiakovski então surge a meu lado. Não olha para mim diretamente, mas sim descortinando o horizonte. Então diz:


- Por favor, meu caro, nada de sentimentalismos baratos nesta hora! Prestou atenção como a chuva diminui e ao longe se entreabre uma nesga de céu? Isso mesmo, e agora meu impaciente senhor, permita que o sentido deste céu lhe penetre no espírito. Deixe que tranquilize seu coração neste momento sublime de vida ou morte. Veja de novo, ó infeliz, sem zombarias e falsos conceitos de heroísmo. Brilhar para sempre, brilhar como um farol, brilhar com brilho eterno, gente é para brilhar, que tudo mais vá para o inferno, este é meu slogan e o do sol... – recita um de seus poemas.


- Você não fala português, é russo. E morreu há quase cem anos – digo desconcertado.


- Ah, sim. A temporalidade... as impossibilidades. Deverias saber que isto não existe. Ou como saberias que eu sou eu. Não te disses meu nome. Nunca me vistes antes, só lestes.


Sou forçado a perceber sua coerência e minha incongruência. Como poderia saber de fato que ele era Maiakovski? Nem ao menos usava roupas antigas; ao contrário trajava uma calça jeans, uma blusa polo e um mocassim nos pés.


- Mas sim, não temos muito tempo para elucubrações – continua a falar – Então deixe passar por trás o véu deste ridículo e imbecilizante falso amor, a forma distante deste sentimento divino. Veja o raio de sol que brota entre nuvens prenunciando a noite que não tarda a cair. Escolhestes bem o momento. A fresta entre mundos propiciamente se abre nesta hora. Mas estarás tu preparado para tal feito? Saberás saltar? Ouça com atenção, ó infeliz! O senhor tens realmente necessidade de assim fagir? Ou é um capricho tolo de quem acredita ter perdido tudo, quando na verdade nada encontrastes ali naquele amor. Se é que de tal nome o podemos chamar. A vida é assim aqui neste espaço-tempo, e temos de deixá-la ser assim, e se não formos idiotas devemos rir-nos dela. Aprenda a rir e o todo mais, e leve a sério apenas o que mereça ser levado a sério. Amar não é aceitar tudo. Aliás, onde tudo é aceito, desconfio que há falta de amor verdadeiro. Por isso não deixe ninguém invadir teu jardim para não ter o risco da casa arrombada. Mas se ouvires o que gritas dentro de ti, perceberás que tenho razão. Não aceitastes a condição de inanição de uma estéril alma e corpo, e no entanto se mortificas como criança que tomaram o pirulito. Justo? Oh, não meu filho. Aqui tudo é tão falso, tão infernalmente estúpido e errado. Mas necessário, não duvides. E quem sou eu para dar conselhos, não é? Apenas um pobre homem letrado. E não quero que sejas triste, como o poeta que envelhece lendo Maiakovski de conveniência. Por isso estou aqui para te dar força, te dar exemplo. Se achas que essa é a única saída, quem sou eu para contrariá-lo. Mas estejas pronto para falhar, para o aniquilamento. Se a morte for tua companhia no salto, se dela não desprenderes medo, então terás uma chance. E por não querer retardar mais o momento, salto eu na frente.


E antes que tivesse tempo de dizer qualquer coisa, Maiakovski subiu rapidamente no parapeito e saltou com os braços abertos. Sumiu. Pensei ter visto um leve movimento por entre nuvens além, mas nada mais. Então é isso. Não me vejo demovido de meu intento pois a dor que tenho só eu sei, só eu carrego. E é hora de despejá-la para longe em cântaros, ainda que assim jogue fora a mim mesmo. Preparo-me para saltar por minha vez.


- Pular pode não ser uma boa opção agora – diz uma voz atrás de mim.


Viro-me rapidamente... e a moça do boné do apartamento vazio está ali. Estou em pé no parapeito e algo me faz sentir o ridículo do momento.


-Maiakovski... você o viu? Ele estava aqui agora e eu …


- Quem? Não, não vi ninguém. Não há ninguém além de nós dois. Somente loucos como nós para virmos aqui num dia chuvoso como este. Você um pouco mais, eu diria.


Desço do parapeito. Olho em seus olhos e o que vejo é amor, muita ventura, muita perplexidade, muito prazer e muita dor; amores desperdiçados; íntimo devaneio; ardente luxúria; flores castas e delicadas, flores lilases, flores vívidas que logo murcham; presente melancolia; angustioso desfalecimento e esplendor renascente. Estou mudo de sentidos, mudo diante de ângulos crepusculares de uma vida. E ali prevejo perigos, habilidades amorosas insuspeitadas, espantosas e mortais.


- Eu queria ter te ligado mais cedo...


- Você ligou. Por isso estou aqui. Disse que viria para cá e se eu não viesse... pularia. Que homem que nem me conhece seria capaz de saltar de um acidentado? Não sei, nunca soube. Por isso vim... acho que um homem capaz de tal ato de coragem merecia minha atenção.


Agora percebo e me surpreendo. Disse que tinha a vantagem de somente de fora para dentro poder ligar para mim mesmo. Mas descobri que meu Eu interior podia ligar para outros mais que não eu... o homem de pé perplexo e agora a moça.


Sorrio para ela. Penso em mil coisas para dizer. Penso em caminhos, encontros, desencontros, amor, dança, medo, cheiro, passagem, beijo, chuva, contenção, partidas e chegadas, canção e poesia...


- Achei que nunca mais a veria... estava de partida – é tudo que consigo dizer.


- Eu sei, Demian me contou. O hamster... disse que poderias gostar de mim. Mas tínhamos impossibilidades até então. Acho que uma porta se fechou hoje para ti, mas não deverias ignorar uma outra que se abre.


Concordo com a cabeça, com o corpo e com a alma. Então ela também falava com animais. E plantas, será?


- Vamos daqui – continua a falar; uma mecha de fios de luz a escapar sob o boné – Quero saber muito de ti: se já conversou com o espelho, já quis ser bruxo, se passou trote por telefone; se já tomou banho de chuva, roubou beijos, fez juras eternas; se já chorou sentado no chão do banheiro, se já sentiu medo do escuro, se já viu pôr-do-sol cor-de-rosa e alaranjado, se já correu para não deixar alguém chorando... tantos já's... Mas primeiro vamos recolher o pouco de ti que ainda resta, para depois tentarmos colar o Tudo.


E dizendo isso se abaixou e carinhosamente começou a resgatar do chão os fragmentos de mim. Vejo surpreso que de suas mãos se desprendem luzes. Penso que talvez deverias reconsiderar, que deverias acreditar que é possível... Lembro-me que hoje será noite de Natal e decido ver onde esta estrada vai me levar. De qualquer forma, sempre é factível retornar e empreender o salto. Mas só hoje, só por hoje vou me permitir crer que o Amor sempre vence. E talvez no amanhã assim estejas vitorioso. Abaixo-me e começo a ajudar. É quando nossas mãos e almas se tocam.



(R. Moran)
.. da série: Coisas a dizer... para alguém que está por vir.)
*escrito ao som de "Down by the river" - Neil Young
* todos os direitos reservados ©



4 comentários:

  1. nossa, que legal.. Sabe que eu adorei quando você disse que ia acreditar que o amor sempre vence, o amanhã não importa, vamos pensar no hoje.

    Beijo e feliz Natal"

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  2. Devaneios deliciosos...
    Feliz natal!Beijos

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  3. Moran, amei " falopergunto vibrando em violeta" somos assim: comunicação imanente... falamos mesmo na magia do silêncio. E mágica é sua escrita.
    Um feliz Natal poético!

    Beijos

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  4. Nossa, que mergulho na alma, no eu.........quantos relatos fui indo, indo e aprofundando na leitura, acontecimentos, fatos, ficção........impressionante por demais, consegui ver vários aspéctos, mas ainda por elaborar oque possa ter entendido, oque possa ter pensado,não entender e ou entender demais..........enfim ,muito a se dizer!Mas fascinante e só posso dizer que é literalmente o encontro com o próprio eu... que pra mim é assustador enigmático, porém preciso, para que o resto venha fluuir.
    Beijos e boa noite!

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