EMBARCADOS
“Quando
tu vieres sem amargura,
entre as
mulheres seja armadura
Entalhadas
vontades, palavras sem metades
Crio um
fim,de frente pra ti, diferente Sim
Eu crio sem
fim, num fio em mim”
(da série: Coisas a dizer...)
Enfim
louco. Enfim fora da fila. Enfim redimido. Enfim em paz. Porém, não
mais sozinho. O mundo se esconde no crepúsculo, mas há uma luz
interna em mim que clareia a noite. Fecho os olhos e é fabuloso ver
a vida pelos olhos do espírito da noite, dia a dia, testemunhando o
que é espiritual nas pessoas. Viver... um olhar é o bastante. Abro
os olhos. Testemunhar, dar fé do caminhar, reunir os cacos
quebrados, juntar e rearranjar as partes se moldando em algo novo a
cada vez; permanecer no sentido, sentindo todo o peso do conhecer;
rompendo com a presença de laços a me unir à terra. Mas agora
retorno provisoriamente. Estive dentro tempo suficiente, ausente do
viver mundano tempo suficiente. Tempo suficiente fora de padrão.
Novamente piso em chão, depois de muito navegar. Prometo tentar ser
familiar a todos, suspeito para ninguém. Nem sempre conseguirei, eu
sei. Direi algumas palavras e procurarei entender à todas as
línguas. Assim será enquanto estiver.
Mundo... aqui estou; um estranho; e ainda assim tudo me
é tão familiar. Vendo a cada passo, a cada lufada de vento, a cada
corpo abrigado da chuva por baixo da sombrinha, todo um universo
condensado em véus. E admirando as possibilidades e caminhos por
trás de cada véu. Houve um tempo em que admirei os homens; os reis
e os generais. Foi há muito tempo atrás, quando ainda não sabia
que os homens são cruéis, que matam amores, que destroem vidas.
Fecho os olhos de novo; abro os olhos fechados. Eu olho
para cima e o mundo surge diante de mim e preenche minha alma, meu
coração. Então até as pedras criam vida. E eu vejo as cores, vejo
as luzes. Luzes de raios de sol na tarde que vai, luzes de neon no
céu da noite que cai. Ao trabalho então! Passear, andar, ver e
olhar. Sem me esquecer da minha condição errante. Enfim fora;
dentro do mundo.
Mas triste constato que nada mudou.
A grande maioria das pessoas continuam na fila. São bois indo para o
matadouro. Apenas porque a maioria assim está. Todos sabem; ainda
que inconscientes; do fim. O fim é a morte em vida. O fim dos
sonhos, do acreditar, do Ser, da capacidade de amar. Um dia
amanhecemos, olhamos no espelho e já estamos velhos; o tempo passou
e nada restou. E tudo que construímos, não serviu de nada?
Serviu... um pouco. Filhos, carreira, dinheiro, bens materiais. E nos
contentamos com esse pouco, quando há tanto para se descobrir além
das aparências. O mundo é misterioso e insondável, e em nossa
cegueira simplesmente o ignoramos. Mas há riscos no caminho, e é
mais cômodo permanecer com a maioria. Por isso temos medo de sair da
fila. Porque se é difícil sair, mais difícil ainda é permanecer
fora. Sair da fila não é salvaguarda de nada; não se tem qualquer
garantia. Quando saímos nos descobrimos sós. O pasto é imenso, o
perigo espreita e ninguém à vista a primeira vista. A humanidade é
cruel; e os que ficam gritam para que volte. Não querem sair e não
querem que ninguém saía. Porque isto incomoda. Ando pelas ruas e as
pessoas estão sempre correndo, sempre com pressa, coisas muito
importantes à fazer. Todos são muito práticos, todos muito
sensatos, todos muito sérios, todos muito “pés no chão”.
Sempre olhando para baixo; no máximo no nível da rua; mas nunca
olhando para cima. Por isso primeiro saí da fila, por isso depois me
afastei do pasto. Por isso me fiz ao mar. Para não ter que ouvir os
gritos loucos pedindo para voltar. Para não ser parte daquela
loucura coletiva. Antes um louco só do que mal acompanhado. Mas foi
muito difícil... e quase sempre solitário. E quando pensei “–
enfim alguém para enfunar velas comigo”,quase naufraguei.
Recordo
das tempestades. A chuva, os relâmpagos e os trovões no céu. E no
mar, as ondas gigantes, o vento boreste fustigando; os sinais; a
fúria do tempo. Por dias e dias. Me recordo certa noite de
sexta-feira; de repente uma luz surgindo a bombordo, enquanto corria
em linha reta sobre a água, às vezes se virando, talvez devido à
alegria. Parecia me guiar, parecia livre, e pude rir de novo com ela.
E a tempestade deu mostras de enfraquecer. Entretanto, de repente a
luz começou a correr em zigue-zague, e raios caíram. Com isso
começou outra história, e o que se pensava calmaria, era apenas o
olho do furacão. Então fui arremessado de um lado para outro, sem
conseguir entender, e quase sucumbi diante de tamanha força de
vento. Minha nau praticamente destroçada; eu em frangalhos. E a
única coisa a me manter à tona d'água sendo o sonhar acordado.
Posto que em tempestades não há tempo para dormir, nem tampouco
sonhar. Mas sonhava, não o onírico que coabita nossas mentes
confusas. Mas sim sonhos de querências, de reais possibilidades. Sem
entretanto estar cego. Meu coração ainda batendo. Sobrevivendo.
Quem
você se tornou? Já não sei mais. Espero pela foto revelada e ela
vem com outro rosto. Como devo viver? Talvez esta não seja a
pergunta. Como devo pensar? Tudo tão vazio, tão incompatível. O
vazio e o medo. O medo, o medo do medo, o medo de ter medo. Por que
tanto medo? Penso que temos o direito de ter medo sem temer o medo.
Torná-lo um aliado e não um inimigo. Que caminha a minha direita.
Por que então insistimos em edificar este mundo de ilusões, estas
paredes internas de falsa proteção; a nos proteger do quê? Somos
bestas-feras, e ao nos enclausurarmos nesta terra, alimentamos nosso
próprio monstro. Que aos poucos nos devora, e nos consome, e nos
corroí de tudo aquilo que um dia chegamos a acreditar. E você pode
tentar fugir, mas sempre vai esbarrar nas paredes. E corremos em
círculos. As pessoas estão sempre correndo em círculos. Algum dia
irão colidir. E fingimos que somos sérios, que somos
empreendedores, que somos práticos. Às vezes, só o que importa é
ser prático. Fora disso, nada. Fingimos que somos racionais,
fingimos não ter emoções; fingimos que dirigimos nosso automóvel;
fingimos ver a tarde que cai, a noite que chega; fingimos viver;
fingimos que o trabalho é mais importante que tudo; fingimos que oramos e perdoamos
nossos pecados, fingimos que perdoamos os pecados do outro; fingimos
que pescamos um peixe; fingimos que não precisamos de ninguém;
fingimos que somos felizes. Fingimos sentar à mesa; comer e beber.
Vinhos servidos em tendas no deserto; linguados em baixelas de prata.
Afinal, o que é ser prático? O que é ser racional? O dinheiro traz
a felicidade? Como devemos viver? As mentes confusas e perdidas em
meio a este grande maya.
Adeus ao mundo por trás do mundo!
Já me cansei demais com quem não merece meu cansaço. Chega de
pensar em séculos passados, em discussões inúteis e em agulhas
partidas. O que devo fazer? Não mais pensar, apenas estar. Estar em
um dia de cada vez. Quero experimentar o delicado da vida. Quero
tirar os sapatos debaixo da mesa, quero ter uma febre de verão,
melar os dedos no pote de mel, me emocionar com uma simples refeição,
com o contorno doce de um pescoço, quero sentir o sorriso de alguém
em especial. Por fim “Encontrar” ao invés de “buscar”. Sem
me encantar somente com as coisas espirituais. Ser humano, na medida
em que formos sérios ao sorrir, em dizer verdades brincando. Me
recorde, musa, do palhaço imortal, que abandonado pela plateia,
perdeu seu sorriso! Ele, que de anjo da alegria que era, tornou-se
apenas um mímico ignorado e ridicularizado. Ajude-me a resgatá-lo
lá de fora, nos limites da terra de ninguém, e trazê-lo de novo
para dentro de mim.
O
tempo cura tudo ou o tempo é uma doença? Muito se acaba quando se
está apenas começando, por não acreditarmos que possa ser bom
demais para ser uma verdade. Por outro lado nos atemos aos fatos
extintos, como se a dor ainda existisse. Recusamos a abandonar o
passado, nos lastimando pelo perdido e ignorando o achado.
Perpetuamos aquilo que não nos serve, que é descartável, de forma
tola e frívola. Desprezamos o que é nobre, o que é essencial em
nossas vidas, na sua forma simples e feliz. Supomos ares de
superioridade, quando na verdade estamos nos inclinando para
continuar vivendo. Olhando para o próprio umbigo e deixando de
perceber todo o resto. Somente olhando o vazio, o tamanho vazio...
Quando
era criança, queria ser um pirata, um capitão dos mares. Singrar
sozinho por oceanos; gloriosamente sozinho. E cantar para as ondas.
Na minha voz cantante que me sustenta. Naquele tempo, a criança que
havia em todos nós imaginava claramente o paraíso, e agora só
consegue suspeitar como é. Quando éramos apenas crianças, era o
tempo das perguntas: por que o céu é azul, por que a noite cai,
quando nasceu o tempo, onde acaba o espaço? Um dia ouvi uma palavra
estranha: Stromboli. A criança que havia em todos nós um dia teve
um pesadelo, mas agora o temos a toda hora. Naquele tempo víamos
beleza em tudo, mas agora raramente. Somos tão práticos que não
temos tempo para futilidades. Quando éramos apenas crianças,
brincávamos com entusiasmo, e hoje tal entusiasmo só acontece com o
trabalho, com o dinheiro. O entusiasmo era tanto que víamos
passagens secretas, portos e aberturas para outras dimensões em uma
simples enxurrada de chuva e um barco de papel. A criança que havia
em todos nós tinha um extenso oceano de vivências para descobrir,
para navegar, mas agora fincou âncoras em terra e se esqueceu que um
dia teve um barco. E o oceano primitivo secou, e só restam pequenas
gotas de chuva no presente. E para onde foi o restante de toda aquela
água? Por que há somente este grande vazio onde antes havia tanta
vida? Não podíamos sequer imaginar o vazio, e hoje estremecemos
com a ideia. Por que todos não enxergamos; tal qual as crianças; os
portos, as passagens e as aberturas que existem para fora desta fila,
deste terra caótica? Se todos vissem, haveria uma miríade de mundos
diferentes, haveria uma série de histórias sem desamor ou dor.
A vida e suas dores? Penso que se não as tivesse sentiria falta. Porque além disso existem outras formas de sentido. E precisamos de parâmetros para definir os eixos, os dois lados da moeda. Existe o belo, e a beleza está nas coisas simples. As primeiras gotas de chuva, nadar numa cachoeira, o vinho e o pão, o murmúrio das folhas que caem, a cor das tardes, o voo noturno, o vaso de flores, a toalha na mesa, a mesa posta, o sonho dentro do sonho, a mulher amada dormindo ao lado, o horizonte pacífico, o vento no rosto, o ar que anuncia o frio do inverno.
Assim descobri que não nascemos para navegar sozinhos. Por mais glorioso que sejam os oceanos de vivências, somos parte de um Todo, e a falta daquilo que nos falta é doloroso. Por isso tanta ânsia em ter com quem compartilhar, tanto desejo. O que há de errado com o amor, que sua aspiração não dura tempo suficiente para ter sua história contada? Devo desistir? Se eu desistir, então uma contraparte minha perderá sua outra face. E se isso acontecer, então o amor também perderá sua possibilidade de manifestação. Desisto da batalha, mas não da guerra. Não enquanto não encontrar algo que perdure e que seja complementar ao meu elemento fogo.
O que sei? Sei tão pouco, talvez porque seja apenas somente curioso. Algumas vezes me equivoco pensando porque escrevo como se estivesse falando com outra pessoa. Com alguém que está por vir. Talvez por ser um desajustado.
Desajustado. Das muitas faces, uma pequena parte dizendo que sim, as outras partes gritando que não. Esta poderia ser o início de uma história... as faces. Gostaria de ver uma face, uma determinada face. Esperei uma eternidade para ouvir uma palavra amorosa. Alguém que dissesse simplesmente: “Te amo tanto agora.”. Desejando... Desejando. Desejo uma onda de amor que me invada, que me inunde sem sufocar. E é isso que me faz desajustado; a ausência do complemento deste desejo. Desejo de amar. Não devo chorar, as coisas são como são. Acontece, e nem sempre é como se deseja. Devo então partir definitivamente do mundo de terras liquefeitas?
Não posso ir assim... tenho tanto para fazer. Escrever uma nova história, me transmutar... Descobrir que sou, quem me tornei. Sou um homem melhor do que era antes? Não sei dizer quem sou. Não tenho a menor ideia. Mas sei que me tornei em algo melhor. Um homem sem raízes, sem nação, sem uma fila para seguir. Estou aqui, sou livre. Posso imaginar tudo o que quiser. Tudo é possível! E agora preciso ao menos fazer o que minha atenta observação me ensinou, como dar um sorriso que se sustenta, sentir o alento de uma respiração ao lado meu, observar e me maravilhar com a mágica da vida. A cruz do Sol. O Leste distante. A Luz da Noite. O Norte do mundo. A Grande Ursa. O Oeste selvagem. O Delta do Nilo. O Sul diamante. Os olhos de uma Criança. A Rosa dos Ventos. O Beijo que se estende no Tempo.
Minha admiração não mais pertence aos generais ou aos reis, mas sim aos instrumentos de paz, todos igualmente conduzindo a um estado permanente de amabilidade. O gesto do olhar é tão válido quanto o colar das bocas unidas. Percebo agora que este relato me atenua dos problemas presentes e me salva de um futuro amargo. Me afasta da fila. E é preciso ir além.
Só os oceanos nos levam mais além. Só as rotas novas nos levam mais além. Onde fica a passagem para estes mares? Mares e oceanos também possuem passagens secretas, e é só ali que começa meu navegar, minha rota do conto e do encontro.
Agora vou me jogar ao mar. Agora ou nunca; a hora da nau. Basta erguer os olhos e me converto novamente no oceano. Que me entristece a visão dos homens em terra. Visto minha jaqueta de almirante. É excelente, e só tem um bolso descosturado. E não existe um porto seguro que tanto buscava: só existe a a nau e apenas enquanto estiver no mar. Agora compreendo. Entrarei na nau do tempo, e é lá, no meio deste oceano de vivências que estará meu legado, meu amor. É lá que lançaremos âncoras e faremos nossa morada. Âncoras em terra? Que bobagem! Terra não é lugar para âncoras. Elas foram feitas para fundear no fundo do mar, enquanto pescamos marlins e dourados para a ceia. Adoro a ideia de um novo navegar. Isto é um bom sinal. O sol já está se pondo. Claro, pelo oeste. Agora ao menos sei aonde está o oeste em terra. Sempre me acostumei a olhar o oeste pela amurada de estibordo, navegando ao rumo sul. Subo ao passadiço e o sol está se pondo a frente de mim. E a estrela guia surgindo a direita. Muito bem: o sol e a estrela. Lembro-me não sei porque de Stromboli: será uma ilha ou um vulcão? Nunca me disseram. Lá a frente é um cirrus ou um cirrostratus? Por que gritam tanto da praia? Não querem que eu parta. Não querem ninguém longe da fila. Que gritem, não faz nenhuma diferença. Olho a frente e me deixo arrastar ao oceano universal. De novo o sentimento de bem-estar! Como se dentro do peito uma mão se fechasse suavemente. Me conduzindo a um destino, a um rumo.
Agora sei que este destino está além do horizonte. Não encontrarei minha contraparte aqui, na terra dos homens tristes. Já estive sozinho por muito tempo, mas nunca vivi sozinho. Estive com pessoas, e quase sempre era feliz momentaneamente. Mas ao mesmo tempo toda essa transitoriedade era vaga, nunca completa. Por isso sei que me aguardas de forma perene e gostaria de poder ver teu rosto agora, apenas olhar nos teus olhos e dizer o quanto é bom “Sentir”. Apenas tocar seu rosto e comentar casualmente: “- Como está frio!” ou “- Veja como existem tantas coisas belas!”. Gostarei quando tu aqui estiveres. Gostarei quando puder falar contigo olhando nos teus olhos. Porque em mim, antes de tudo tens um amigo. E quando chegares, irei tomá-la em meus braços, e tu me tomarás em teus braços. E não temerei mais as tempestades. Na crista de cada onda, desejando uma onda mais alta. Em cada trovão, desejando um faiscar maior. Só porque estás aqui; tua presença como um manto me cobrindo da fúria do tempo. E quero saber tudo. Tudo! Descobrir tudo que há em ti. Aí está a graça. E tu irás me ensinar tudo aquilo que ainda não aprendi. Não existe nenhuma história mais importante que a nossa. A do homem e da mulher. E saberemos que existem outras Luas além daquela que está no céu. Me olhe, não me veja apenas. Me dê a mão, não um contato apenas. Hoje é Lua nova, e o mar está mais calmo. Por todo o oceano não correrá sangue esta noite. Agora somos mais do que “nós”. Não só o mar que habitamos, mas todo o mundo se converte em nosso navegar. Agora somos o tempo. Somos únicos, unos. Nós embarcamos!
(R.
Moran)
Abr/2012
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