Do outro lado da tempestade
(da série: Coisas a
dizer...)
“Já não sinto amor, nem dor,
já não sinto nada
Socorro, alguém me dê um coração
Que esse já não bate, nem apanha
Por favor, uma emoção pequena
Qualquer coisa
Qualquer coisa que se sinta
Em tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva...”
Socorro, alguém me dê um coração
Que esse já não bate, nem apanha
Por favor, uma emoção pequena
Qualquer coisa
Qualquer coisa que se sinta
Em tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva...”
Arnaldo Antunes
Quem
és para assumir tantas formas? O que se desvela por trás da dor,
por trás do medo? O que somos neste jogo; insano; de vida e de
morte? Tua natureza, teus tons, tuas cores... Tua fonte de tudo que
está por nascer. Tua morte, que tudo capta e recapta.
Tudo
se resume em ultrapassar a linha, o ponto crítico. O fim é o
princípio de tudo. E no meio de tudo estou eu, debruçado sobre a
amurada de proa envolto em águas encapeladas e selvagens,
vivenciando mais uma tempestade. Que perdura há vários dias. Onde
tudo que posso fazer é esperar. E espero a glória. A misericórdia.
A Paz. Verdade. Espero que alguém traga calma ao meu espírito,
entendimento, coragem para prosseguir. O coração satisfeito. Mas o
Tudo que tenho agora são nuvens escuras, e a névoa que se precipita
sobre mim. Das ondas que se quebram fragorosas sob o casco,
fustigando incessantemente.
Você
é do bem? É gentil? Uma pessoa correta? Você se guia por isso? É
amada? Saiba que não irá sofrer menos por causa de tua bondade.
Saiba que eu também não. Mas podemos nos fortalecer mutuamente,
amenizar a dor, limparmos as feridas e calarmos o pranto...
seguirmos.
Quem
decide quem irá sofrer? Quem decide quem irá sorrir? Quem dirige
este grande teatro da vida? Não entendo esse personagem... o homem.
É incrível como sei pouco sobre esse papel exercido pela
humanidade. Talvez descubra um dia. Entender ao menos sua natureza
primária, seus anseios básicos que os levam a se comportar desta ou
de tal maneira ajudaria. E quem sabe assim conseguir compreender
porque todos têm possibilidades das quais; mesmo que inconscientes;
vislumbram, e no entanto se recusam a ver, a procurar. Mas se aferram
em sombras e solidão; a autoestima exacerbada sendo o inimigo real e
a fonte da miséria do homem. Renunciando ao conhecimento silencioso
pelo
mundo da razão. E quanto mais se agarram ao mundo da razão, mais
efêmero se torna o misterioso e o mágico da vida. Por hora, há um
leve consolo em levantar a cabeça ao céu profundo, de ver a noite
riscada pelos raios fosforescentes através dos olhos do espírito. O
que ameniza um pouco a minha falta de compreensão.
O
amor é um dom ou uma maldição? Ele é lenitivo ou um castigo? De
onde ele vem? Se eu não te encontrar nesta vida, deixe-me ao menos
sentir tua falta. Saber de tua existência...
Me
questiono se a vida sob um luar límpido é apenas um sonho. O diabo
realmente existe e as pessoas são realmente más? Acho que estão
apenas equivocadas. Penso que tudo é uma questão de percepção, e
não acredito que exista bem ou mal. No fundo tudo é uma coisa só.
O mal é apenas o bem em sua forma latente. Sei que a percepção do
que vejo, escuto, toco, cheiro e provo é apenas uma visão do mundo
antes do mundo. E os olhos... os olhos são bem mais do que um mero
sentido. Ver está em enxergar além das aparências. E não se
permitir ficar louco diante das visões do incognoscível. Daquilo
que ainda não podemos entender. Mas apenas o fato de ver nos dá a
certeza de que exista algo além de nossa compreensão. E deveria
bastar para acreditarmos. Para nos instigar a persistir em busca de
respostas. Mas somos incongruentes, e somos falhos em nossa concepção
de vida. Acreditamos na força do átomo, na lei da gravidade, no
obtuso do consumismo, do Poder em ter, na praticidade dos atos. Tudo
futilidade. Porque não acreditamos no essencial...
Que
mundo solitário! Um dia me perguntaram: “Você sente solidão?”
e respondi: “Apenas quando estou cercado de gente. Apenas de
gente...”
Sinto
a força do grito dentro de mim. Quero gritar que estou só, só,
só... Mas de que adianta? Quem irá querer escutar? Não há
expectativas se não existir a esperança. E este é um sentimento do
qual ainda não nos apropriamos devidamente, ainda que se ouça muito
falar. Mas se fala em bocas vazias, se cala em almas rasas que se
recusam a aprofundar, a tocar e serem tocadas. O que significamos
para quem não nos conhece? Nada. E mesmo quando conhecem,
significamos quase nada. Porque somos egoístas, somos centrados
apenas em nós, no nosso ego. Galileu, Copérnico e todos outros
estiveram errados: o homem é o centro do Universo! Cada homem sendo
seu próprio universo; assim acreditam. E os outros... os outros são
meros coadjuvantes neste cenário. Por isso a pouca importância que
damos à vida como um Todo, ao nosso semelhante.
Você
ainda acredita na beleza divina? Como manter a integridade? Como
fazer para não nos esfacelarmos? Ainda vejo uma centelha dentro de
ti. Existe esperança, quero acreditar...
Quando
um homem está ferido se pensa que não há nada além de dor. Que a
morte tem a palavra final. E que ela está rindo dele. Eu olho além
da dor e vejo a glória. A redenção. Provo do próprio sangue e
vejo algo sorrindo através de mim. Porque afinal tudo é uma
mentira. Tudo que ouvimos e vemos dos homens. É tanta coisa abjeta!
Por isso vivem numa prisão. Uma enorme prisão ambulante. E tudo que
querem é que estejamos mortos em vida. Ou dentro da mentira deles. E
aí só nos resta fazer uma coisa: precisamos ultrapassar a linha,
acharmos algo dentro de nós mesmos. Um caminho, uma rota, um oceano
para navegar... longe de toda essa insanidade, essa guerra. Não se
trata de uma fuga. É antes um ato extremo de desespero, de
sobrevivência. É nossa tentativa de nos mantermos íntegros. De não
nos contaminarmos mais com a amargura, toda a dor e todo esse sangue
que escorre pelas mãos dos homens.
Você
está comigo? Não me deixes perder. Não me deixes trair meus
princípios. Deposito minha fé em ti...
Oh,
minh'alma
querida, queria lhe explicar que algo se transforma dentro de nós
com toda essa guerra, dor, todo esse sangue, sujeira e escuridão.
Existe um amargo no peito, uma acidez nas veias que corroí
lentamente se permitimos aos homens ditarem nossos rumos. Somos
envenenados por todos aqueles que nos maltratam, sem ter um porquê
que possa ser entendido ou que faça sentido. Não importa o quanto
nos preparamos, o quão cuidadosos sejamos na condução dos passos,
é uma questão de princípios; ou a falta deles; se somos ou não
irremediavelmente entorpecidos pelo desacreditar, pelo desamor. E uma
questão de sorte, eu diria, se feridos de morte conseguimos
sobreviver. Por isso luto para me manter inteiro... por ti. Como te
alcançar? Ainda não sei... talvez ainda não seja o tempo. Será
bom chegar depois de um longo navegar em um lar, e me emocionar com
um pequeno gesto, uma palavra, um cheiro, um sorriso. E talvez então
lhe conte uma estória que se levanta das profundezas, que fale sobre
um marinheiro que foi empurrado à margem do mundo, que tanto é um
homem bom quanto um facínora, mas que nele se revela sua alma
interior, com todas as qualidades e defeitos. Contarei quantas voltas
ele deu ao mundo em busca de seu porto. Então, como numa liturgia em
que ninguém precise ser iniciado, falaremos com os olhos e o coração
além do significado das palavras e das frases. Um olhar, e minha
vida estará em tuas mãos...
Venha
comigo agora. Se eu chegar primeiro, te espero lá. Do outro lado da
tempestade, além das nuvens escuras...
(R. Moran)