Estátuas
Entre amargo e silente
no inverno em que estou
este é o único presente
que eu mesmo me dou...
No jardim secreto que surgiu, enquanto pelo mundo
corria,
onde pássaros não se explicam e flores não são só
cores,
havia duas estátuas nuas a se tocarem, intensas e
exatas
de bocas amantes envolvidas, voluptuosas e agradecidas.
Era noite e primavera, e a lua derretia um brilhante
fio
nos corpos marmóreos úmidos de tímido sereno caído
que tímido ficava ao tocar a superfície de pedra
esculpida
feitas de duas estrelas tutelares, de sal e do cristal
dos mares.
Enquanto pensava o que se pensa neste contemplar à
vida
aparecestes por sobre este jardim, em sonora e
silenciosa alegria
surgindo por entre visões do céu, em nácar de
orvalho trêmula
trazendo à luz um sorriso, onde o sonho ousou pensar
um motivo
E no equilíbrio do silêncio, o peito nutria a duração
de tua presença
num fio de respiração, o lábio do sentimento unia-se
ao teu apetente
e extenuada nossa fome, deitada de olhos fechados
ficavas no peito meu
e deitados dormíamos unidos, até próxima noite, em
estátuas convertidos
Por ali algumas noites permaneci, sem passado, presente
ou futuro
e a ti, Deusa do humor volúvel, fui como nunca ninguém
foi ou será
e inebriado com teus olhos de primavera e muitas coisas
acontecidas
sonhei caminhos sem saber, como era fácil pela seta do
silêncio morrer
E uma noite – sem motivo ou aviso – se deu coisa
estranha e dolorosa
em que transtornada fizestes para sempre o jardim
destituído de glória
uma noite sem lua, em que dissestes que tudo é efémero
e passa alhures
porque em ti um tempo triste, enevoado e profundo, há
muito persiste
E nesta noite fatídica, em que se anuncia o fim do
sentimento vivido
cresceram nuvens sobre a lua, quedaram as flores,
cessaram os cantos
caíram os olhos do meu olhar, e foram ao chão com os
mitos de pedras
e no sopro da noite deserta, deitadas às sombras, à
última estrela encerra
Hoje é inverno na alma, e sem tristeza, circunspecto
por perda e saudade,
por vezes me debruço no muro do jardim silencioso e
vazio em que estão:
mutiladas flores; a primavera abolida; o solo escuro;
os pássaros calados;
e as partes ao chão, perfeitas e ordenadas, de duas
estátuas quebradas.
(R. Moran)
Da série: Coisas a dizer: para quem foi e quem vai chegar depois...
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