quinta-feira, 5 de julho de 2012

Do outro lada da tempestade


    Do outro lado da tempestade
    (da série: Coisas a dizer...)

“Já não sinto amor, nem dor, já não sinto nada
Socorro, alguém me dê um coração
Que esse já não bate, nem apanha
Por favor, uma emoção pequena
Qualquer coisa
Qualquer coisa que se sinta
Em tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva...”

Arnaldo Antunes


Quem és para assumir tantas formas? O que se desvela por trás da dor, por trás do medo? O que somos neste jogo; insano; de vida e de morte? Tua natureza, teus tons, tuas cores... Tua fonte de tudo que está por nascer. Tua morte, que tudo capta e recapta.



Tudo se resume em ultrapassar a linha, o ponto crítico. O fim é o princípio de tudo. E no meio de tudo estou eu, debruçado sobre a amurada de proa envolto em águas encapeladas e selvagens, vivenciando mais uma tempestade. Que perdura há vários dias. Onde tudo que posso fazer é esperar. E espero a glória. A misericórdia. A Paz. Verdade. Espero que alguém traga calma ao meu espírito, entendimento, coragem para prosseguir. O coração satisfeito. Mas o Tudo que tenho agora são nuvens escuras, e a névoa que se precipita sobre mim. Das ondas que se quebram fragorosas sob o casco, fustigando incessantemente.


Você é do bem? É gentil? Uma pessoa correta? Você se guia por isso? É amada? Saiba que não irá sofrer menos por causa de tua bondade. Saiba que eu também não. Mas podemos nos fortalecer mutuamente, amenizar a dor, limparmos as feridas e calarmos o pranto... seguirmos.



Quem decide quem irá sofrer? Quem decide quem irá sorrir? Quem dirige este grande teatro da vida? Não entendo esse personagem... o homem. É incrível como sei pouco sobre esse papel exercido pela humanidade. Talvez descubra um dia. Entender ao menos sua natureza primária, seus anseios básicos que os levam a se comportar desta ou de tal maneira ajudaria. E quem sabe assim conseguir compreender porque todos têm possibilidades das quais; mesmo que inconscientes; vislumbram, e no entanto se recusam a ver, a procurar. Mas se aferram em sombras e solidão; a autoestima exacerbada sendo o inimigo real e a fonte da miséria do homem. Renunciando ao conhecimento silencioso pelo mundo da razão. E quanto mais se agarram ao mundo da razão, mais efêmero se torna o misterioso e o mágico da vida. Por hora, há um leve consolo em levantar a cabeça ao céu profundo, de ver a noite riscada pelos raios fosforescentes através dos olhos do espírito. O que ameniza um pouco a minha falta de compreensão.



O amor é um dom ou uma maldição? Ele é lenitivo ou um castigo? De onde ele vem? Se eu não te encontrar nesta vida, deixe-me ao menos sentir tua falta. Saber de tua existência...



Me questiono se a vida sob um luar límpido é apenas um sonho. O diabo realmente existe e as pessoas são realmente más? Acho que estão apenas equivocadas. Penso que tudo é uma questão de percepção, e não acredito que exista bem ou mal. No fundo tudo é uma coisa só. O mal é apenas o bem em sua forma latente. Sei que a percepção do que vejo, escuto, toco, cheiro e provo é apenas uma visão do mundo antes do mundo. E os olhos... os olhos são bem mais do que um mero sentido. Ver está em enxergar além das aparências. E não se permitir ficar louco diante das visões do incognoscível. Daquilo que ainda não podemos entender. Mas apenas o fato de ver nos dá a certeza de que exista algo além de nossa compreensão. E deveria bastar para acreditarmos. Para nos instigar a persistir em busca de respostas. Mas somos incongruentes, e somos falhos em nossa concepção de vida. Acreditamos na força do átomo, na lei da gravidade, no obtuso do consumismo, do Poder em ter, na praticidade dos atos. Tudo futilidade. Porque não acreditamos no essencial...



Que mundo solitário! Um dia me perguntaram: “Você sente solidão?” e respondi: “Apenas quando estou cercado de gente. Apenas de gente...”



Sinto a força do grito dentro de mim. Quero gritar que estou só, só, só... Mas de que adianta? Quem irá querer escutar? Não há expectativas se não existir a esperança. E este é um sentimento do qual ainda não nos apropriamos devidamente, ainda que se ouça muito falar. Mas se fala em bocas vazias, se cala em almas rasas que se recusam a aprofundar, a tocar e serem tocadas. O que significamos para quem não nos conhece? Nada. E mesmo quando conhecem, significamos quase nada. Porque somos egoístas, somos centrados apenas em nós, no nosso ego. Galileu, Copérnico e todos outros estiveram errados: o homem é o centro do Universo! Cada homem sendo seu próprio universo; assim acreditam. E os outros... os outros são meros coadjuvantes neste cenário. Por isso a pouca importância que damos à vida como um Todo, ao nosso semelhante.


Você ainda acredita na beleza divina? Como manter a integridade? Como fazer para não nos esfacelarmos? Ainda vejo uma centelha dentro de ti. Existe esperança, quero acreditar...



Quando um homem está ferido se pensa que não há nada além de dor. Que a morte tem a palavra final. E que ela está rindo dele. Eu olho além da dor e vejo a glória. A redenção. Provo do próprio sangue e vejo algo sorrindo através de mim. Porque afinal tudo é uma mentira. Tudo que ouvimos e vemos dos homens. É tanta coisa abjeta! Por isso vivem numa prisão. Uma enorme prisão ambulante. E tudo que querem é que estejamos mortos em vida. Ou dentro da mentira deles. E aí só nos resta fazer uma coisa: precisamos ultrapassar a linha, acharmos algo dentro de nós mesmos. Um caminho, uma rota, um oceano para navegar... longe de toda essa insanidade, essa guerra. Não se trata de uma fuga. É antes um ato extremo de desespero, de sobrevivência. É nossa tentativa de nos mantermos íntegros. De não nos contaminarmos mais com a amargura, toda a dor e todo esse sangue que escorre pelas mãos dos homens.



Você está comigo? Não me deixes perder. Não me deixes trair meus princípios. Deposito minha fé em ti...



Oh, minh'alma querida, queria lhe explicar que algo se transforma dentro de nós com toda essa guerra, dor, todo esse sangue, sujeira e escuridão. Existe um amargo no peito, uma acidez nas veias que corroí lentamente se permitimos aos homens ditarem nossos rumos. Somos envenenados por todos aqueles que nos maltratam, sem ter um porquê que possa ser entendido ou que faça sentido. Não importa o quanto nos preparamos, o quão cuidadosos sejamos na condução dos passos, é uma questão de princípios; ou a falta deles; se somos ou não irremediavelmente entorpecidos pelo desacreditar, pelo desamor. E uma questão de sorte, eu diria, se feridos de morte conseguimos sobreviver. Por isso luto para me manter inteiro... por ti. Como te alcançar? Ainda não sei... talvez ainda não seja o tempo. Será bom chegar depois de um longo navegar em um lar, e me emocionar com um pequeno gesto, uma palavra, um cheiro, um sorriso. E talvez então lhe conte uma estória que se levanta das profundezas, que fale sobre um marinheiro que foi empurrado à margem do mundo, que tanto é um homem bom quanto um facínora, mas que nele se revela sua alma interior, com todas as qualidades e defeitos. Contarei quantas voltas ele deu ao mundo em busca de seu porto. Então, como numa liturgia em que ninguém precise ser iniciado, falaremos com os olhos e o coração além do significado das palavras e das frases. Um olhar, e minha vida estará em tuas mãos...


Venha comigo agora. Se eu chegar primeiro, te espero lá. Do outro lado da tempestade, além das nuvens escuras...





(R. Moran)
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