Sutilezas
(da série: Coisas a dizer...)
Alguns dizem que somos diferentes dos animais. Porque
podemos fazer uma coisa que eles não podem fazer: matar a distância.
Não queria que assim fosse... porque implica dizer que os animais
são muito melhores que nós. E excludentes do reino animal; dito
irracional; devemos ser portanto uma outra espécie de animal: a
besta-fera. Que não só mata a distância, mas perversamente, mata
de perto, mata de cima, mata de baixo, mata matado, mata morrido,
mata queimado, de chão deitado, de caso pensado, mata de mentiras,
de subterfúgios, de degredo, de abandono, mata de medo, de
corrupção, de concussão, de bem e de mal, de maltrato emocional.
A morte e seu sentimento começa no nascimento, quando
expulsos do concupiscente abrigo uterino. Ali choramos – de tal
forma conscientes de nossa errática condição humana – sabedores
que somos do caminho árduo à frente. Sentimos o peito
demasiadamente oprimido e escuro. Falta luz no principiar da vida. O
que não quer dizer que à adquirimos em seu decorrer. Deveríamos,
mas não o fazemos em nossa maioria por sermos ridículos. Temos um
corpo, mas as almas que nele residem não são duas, nem três, nem
dez, mas incontáveis almas desesperadas em eterno conflito. O homem
é um cacho de faces, de múltiplas facetas, de trama urdida em
muitos fios. As antigas sabedorias sabem muito bem disso. Muito se
estudou e muito se aprendeu sobre a ilusão da personalidade.
Sombrio; ora divertido; multíplice no seu insistente jogo da
humanidade, o homem caminha, insano. Estrada da dualidade e do caos.
De encruzilhadas, escolhas e decisões. Indecisas em sua maior parte.
Erradas por atitudes impensadas e gestos vazios, inúmeras e inúmeras
vezes. Até que aprendamos a acertar, a não dar tantas voltas. Mas
isto leva tempo.
A uns poucos foi dado, após milhares de anos e
estudos, a descoberta da ilusão da condição humana, enquanto que
milhares; a maioria da consciência mundana que transige nesta nave
Terra; se dão a tanto trabalho para custodiar e fortalecer a mesma
ilusão que deveríamos acabar de vez, quando não muito restringir
gradualmente. Entendo que esta maioria busque ascender econômica e
socialmente falando, em busca de uma vida melhor e de serem felizes.
Mas por que então essa felicidade parece não chegar nunca? Quanto
mais temos mais precisamos ter para alcançarmos um patamar que só
fica cada dia mais longe. É o cachorro correndo atrás do próprio
rabo. Deixamos há muito valores importantes para trás e que hoje
são tratados como abstratos pela acachapante imposição da
realidade prática estabelecida. E que se mostra falida, ainda que
relutem em aceitar que algo está errado. Não entendem. Um dia me
perguntaram: “Por que não entra no jogo? Há oportunidades e
valores para serem conquistados?” Não entendem que têm valor para
eles e não conseguem entender porque não têm valor para mim.
Status, revolução, drogas, capitalismo, salão de beleza, carro
esporte, montblanc, moet chandon, lugar na primeira fila e tudo o
mais. Busco ser um ser humano; simples; e é só o que quero ser.
Por isso espero uma mudança. Não que queira uma
mudança em massa, porque toda mudança em massa provoca loucura em
massa. Há que se considerar, como dito por Nelson Rodrigues, que
toda unanimidade é burra. Assim, mesmo à duras penas, prefiro uma
mudança sutil e gradual. O que exaspera é a perspectiva de que isso
parece estar ocorrendo no sentido contrário. Onde todos procuram
respostas onde não existe nenhuma. Porque estão olhando para o lado
errado. E existe lado certo? Não, eis o problema. Não existe lado
nenhum, mas sim o centro, o interior abstrato de cada um onde se
depositam todas as respostas. É uma jornada pessoal, e não é fácil
empreendê-la. Mas as pessoas não sabem como viver e o que fazer, e
acham que podem descobrir se forem com a maioria desesperada. As
pessoas estão muito perdidas. E não quero isso para ninguém.
Porque não fomos feitos para sermos bois em fila indo pro matadouro.
Ciente que não o fariam espontaneamente, ainda que na sua limitada
condição animal. Os bois assim agem porque são direcionados por um
predador maior e não têm discernimento do fim que os aguarda ao
término da fila. E então se dá o paradoxo.
Alguns podem dizer que somos iguais aos animais. Porque
fazemos a mesma coisa que à eles só resta fazer incondicionalmente:
caminhar para a morte. Cônscios ou não é mera conjectura
individual, pode-se dizer. Queria acreditar que não, já que não
temos predadores... o que implica aceitar que somos nossos próprios
predadores. E não seremos? Senão vejamos: dominamos o fogo, criamos
raízes, já fomos a lua, penetramos no núcleo do átomo;
desenvolvemos obras de engenharia e cavamos fosso em busca de água;
lançamos sondas espaciais e orbitamos planetas à distância;
miniaturizamos o que já era mínimo e cada vez é menor; aceleramos
o tempo; encurtamos o espaço; ampliamos nossos conhecimentos sobre a
mente para descobrirmos que sabemos muito pouco; e se, quando pouco
nos jogam num vazio; quando muito nos chamam de loucos. E damos
mostras de que temos capacidades ainda maiores para cometermos
atrocidades, vilipêndios e barbáries. É preciso um despertar para
um novo estado de consciência, para uma nova realidade, menos fútil,
menos aparente e mais sutil.
Eu acredito que o despertar possa acontecer a qualquer
um, a qualquer hora, em qualquer lugar. Aprendi isso quando era
pequeno. E aprendi também a lidar com coisas estranhas. Porque para
mim o Mundo é um lugar mágico. E se pudermos acordar para o real,
veremos coisas assombrosas e nenhuma maldade se justificará mais.
Nenhuma disputa por poder ou posses fará sentido. As vezes sinto
vontade de ir para a rua e gritar para que todos acordem. Mas o homem
continua dormindo em seu sonho enevoado de sombras e destempero. Eu
ainda não entendo. Na verdade, acho que nunca vou entender. Como
seres humanos dito civilizados fazem o que fazem com o seu quintal,
sua casa, sua cidade, seu país, seu mundo, seu semelhante? Talvez a
civilização esteja ultrapassada. Talvez tenha perdido o compasso.
Em nome da praticidade, renunciou ao abstrato, e com isso se afastou
do cerne da questão espiritual. Que não pode ser tratada pela pífia
e limitada racionalidade humana.
Gostaria de poder me comunicar melhor com meus
semelhantes. Falar de coisas simples; da beleza na simplicidade;
falar de momentos ímpares, de olhares pares; do riso fácil e da
alegria que invade o cair da tarde. Me comunico apenas em um certo
nível. Por minha própria incapacidade de me expressar. Mas é que
nem tudo se conjectura em palavras tão facilmente quanto
gostaríamos. E descobri que não dá para falar nada que não seja
“a sério” com a grande maioria. Não entenderiam. Porque todos
são muito sérios. Uns acham que vão para o inferno se agirem
diferente. E não posso fazer nada para que entendam que não
necessita ser desta forma. Não há comunicação nestes níveis.
Temos que adentrar no campo das sutilezas. Na forma e
na essência. Temos que querer perceber, temos que ter um olhar além.
Temos que duvidar, questionar, perguntar; sem medo de opinar e sermos
expostos; de revelar-nos, desobscurecermos, clarearmos a fonte,
romper paredes, sairmos do labirinto, da boca da caverna que nos
tolhe, e nos prende, sufoca e nos mata. Aos poucos, morrendo assim.
Mas chega de falar de morte. Falemos da vida. Porque é disso que
estamos falando o tempo todo. Não existe essa dualidade. Por isso
somos ridículos. Não percebemos que tudo que morre é para nascer
de novo, e de novo e de novo. Tanto quanto for preciso até não ser
preciso mais. Há uma evolução em todo o processo, ainda que se
mostre lento como o rio que corre para o mar. Por baixo, bem por
baixo, percebe-se a correnteza que inexorável vai ganhando força.
Somos fadados ao sucesso, somos seres luminosos. Que alguém nos
escute, por favor...
Podem dizer que no fundo quero o mesmo que todos. Não
seria verdade. Não preciso de tanto poder ou de tanto dinheiro.
Posso ficar aqui neste meu caminho, desde que seguindo em frente. Não
preciso ser presidente do país ou membro da diretoria. Não preciso
subir dessa forma, fazer essa escalada invertida para longe de mim.
Está tudo aqui agora, comigo. Ou quase tudo... o que falta, então?
Quero ser Eu em plenitude e encontrar um lugar onde
possa manter o equilíbrio e a clareza dentro de mim mesmo. Não como
Hamlet: “Ser ou não ser.” Apenas Ser. Onde exista alguém que
não entenda porque sou assim, mas queira que eu seja mesmo assim.
Onde este alguém não seja apenas uma metade, mas o complemento do
Todo em uma unidade. Para que possamos ter o riso fácil de quem não
tem mais pressa de chegar. Na sutileza do olhar, do encontro, da
magia, das respostas interiores emanadas do calor das bocas silentes,
do cair da tarde, do mistério da noite... A noite eterna, que a mim
invade agora. Sou notívago, já disse?
(R. Moran)
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