sexta-feira, 1 de junho de 2012

Antes de partir


Antes de partir...



Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte,

mal algum eu temeria, porque tu estás comigo...




Agora lembro. Dos risos fáceis e puros. Do mostrar a mancha roxa esculpida no corpo e eu rindo também porque te queria rindo; feliz. Apesar da rudeza dos maxilares e dos entrejeitos de boca, gostava de ver que por vezes era criança e principalmente por que agora me lembro de levantar a cabeça do travesseiro para observar nossos movimentos sincronizados no olhar. Gostava do dizer nestas horas mesmo quando não dizíamos nada, apenas nos assustávamos no mirar. De saber ou pensar em saber do quanto era grato o querer. E quando dizíamos não eram letras que saltavam da boca, mas sentidos sentimentos que se traduziam em algo que era amor, ainda que fizéssemos força para negar. De tocar teus cabelos lustrosos que me faziam pensar numa noite eterna emaranhada de brilhos de Lua, misturando-os até que se embaraçassem entrededos em novelos de sonhos. Depois os passos que foram dados sem que eu pedisse; sem entreatos vazios mas intensos; para que eu acreditasse que era possível ser; das luzes que víamos e ríamos sem que as mãos pudessem segurar o que sequer se toca; só se sente e vive.

Agora digo. Das palavras doces e das amargas. É preciso que eu tente de todas as maneiras dizer; é o que eu estou fazendo; minha última tentativa. Estou tentando dizer sem conseguir, por favor, me ajuda, senão daqui a pouco não será possível, senão vai ser muito tarde. E é por isso que estou rouco agora. Não, não é do som da garganta que fala que falo. É de uma outra voz, da que vem de dentro, entende? Por favor, não ria ou se entedie julgando pensando que me faço de vítima. Não é preciso; deixa eu te dizer antes que eu parta ou morra, ou ambos, que partir e morrer é apenas uma questão de vista. Ou é longitude ou profundidade.

No princípio era leve, havia leveza e era o que querias então me bastava também. Por que então quis que se tornasse complexo dizendo a mim que era pra sempre? Por que fazia juras que depois negavas como quem nega a própria imagem reflexa? Por que uma hora era poesia e na outra covardia? Não consigo compreender como penetrei na teia sem ter consciência, sem policiamento; eu que confiava tanto em mim e que me dizia que tudo estava sobre controle. Para isso basta saber que cresceu dentro de mim de um jeito totalmente insuspeitado, como lunação que transita de nova para crescente. Era só uma pequena luz de luar, mas que em algum momento expandiu em alguma luminescência enorme; de Lua cheia, de estrela Ursa, maior ou menor tanto faz; e me obrigou a abrir as janelas da alma, depois as portas; todas as portas; para então derrubar as paredes internas do que sou e meu telhado de sonhar para deixar que tua luz se expandisse mais do que além. Era preciso para que crescesse livremente, eu não podia tolhê-la, compreendi a tempo que você precisava de muito espaço livre e assim fiz, não pense que me arrependo, apenas que para isso tive que me desfazer de toda segurança que eram as janelas, paredes e telhado de minha casa, meu templo que me dava guarida.

Sei então de acordar uma noite, só e nu, abrir os olhos para um teto de espaços vazios e tocar um lugar vazio na cama. E por não encontrar nada, procurei um cigarro, depois uma chama e depois fumei odiando cada trago, querendo que cada um me devorasse e me queimasse. Pois que fogo se trata com fogo. Depois me olhar no peito e me dar conta de um simples cabo assomando, sem floreios ou marcas que o valham. E sentir uma fria lâmina congelando por dentro o que antes abrasava em erupção solar. Agora sei e assusta-me a certeza súbita de que nada poderia fazer para evitar os acontecimentos, senão aceitá-los como se aceitam tantas coisas na vida. A morte inclusive.

Agora sangro. Não que seja visível como a luz espraiada que se desprende do abajur enquanto desenho estas linhas. É interno, é silencioso o sangrar... e intensamente doloroso. Verte cálido dentro do peito; me fazendo sentir fome e sede; me entontece; inunda órgãos e espaços interiores, ocupa todas as brechas e frestas entreossos. O cabo retirado do peito mas a lâmina ainda dentro; incólume e oculta de todos; maltratando e matando aos poucos. No espanto da noite estou só e não tenho para quem gritar minha dor. Ninguém para dizer de meu ferimento, minhas mazelas; ninguém para compartilhar minha fome de uma alma, minha sede de saliva, meus desencontros; ninguém para suprir a falta de amparo ou um quilate de amor. Nem ao menos uma parede para me sustentar.

Agora choro. Por isso agora choro. Não que as lágrimas escorram pelas faces sulcadas. São secas e quentes e não lavam ou refrescam a alma como dizem os poetas. São lágrimas de fogo que brotam dos olhos como estrelas cadentes e que queimam no cair tardio dessa madrugada. E ao olhar de dentro da alma pela janela dos olhos me vejo parado no meio do quarto olhando para fora de mim. Olhando para fora e repetindo: onde foi que me perderam e abandonaram? Por que o bicho-papão não saí de cima do telhado e desce para me engolir? Talvez no seu mastigar haja lenitivo para a dor pois; ainda que doa; doí menos do que sangrarmorrerassimaospoucos. Pelo menos deve ser rápido, penso enquanto com a mão toco o peito e sinto o farfalhar de uma sombra deitada rindo dizendo que não existe bicho-papão; não para mim. Nem telhado tenho mais. Que é bom que eu sangre para que se vingue todos que maltrataram, todos que jogaram pedras. Terei eu jogado pedra na cruz? Mas em qual cruz? Em quantas cruzes? Ainda assim, havia a opção de não ser por estas mãos que sangrasse. Não precisava ser. Todas as mãos seriam bem-vindas; pálidas, tortas; direitas ou esquerdas; negras, brancas, morenas; de pianista ou de equilátero ferrífero; mãos de jade ou de jasmim; de ébano ou Danúbio azul; de sombras; de cores; do lado brilhante do dia ou do lado escuro da Lua. Mas não de mãos que tomaram meu Eu, de mãos onde depositei pleno de esperanças minh'alma machucada para que fosse observada, não curada. Que curar se curaria sozinha, bastando a paciência de se esperar. Mas que a vida pode não ter pressa, mas que a morte sim. Quando se quer a morte daquilo que afronta os que não acreditam que – a despeito de – é possível. Onde só se vê problemas, querências de dizer não, negação da vida e do próprio amor. E que não ouses levantar a voz, não queiras dizer o que sentes, pois que somos fracos e farsantes vítimas aos olhos de. Uns pobres coitados, dignos de pena.

Por isso, antes que eu morra, parto. E lembro, digo, sangro e choro... antes que eu parta. Para que eu não sobrecarregue mais meus porões, para que eu não tenha lembranças a seguir-me, para que eu estejas livre e.

Agora ergo. Os olhos para o orbe de estrelas, a boca para o grito, o nariz para os altivos, ouvidos para os moucos, as mãos para quem me estende. E entende ou busca. Não fracassei, ainda que me apontes falhas. Não fraquejei, ainda que me digas batido. Se não ousei mais não foi por querer, foi por falta de. Se não amei mais não foi por falta de desejo, foi ausência de. Se não corro mais é porque não vês que meu caminhar já me leva longe, distante de. Um chamado me clama, e sei que ainda não é hora de porto seguro. Volto ao mar, com a glória de “Glória dos mares”; meu almirantado navio combalido de tantas lutas, de velas enfunadas e de cara ao vento...


Enfim, os arrebóis são lindos. Passei pelo melhor de instantâneos de vida, amei muito, naveguei por mares nunca dantes navegados, observei cores, contemplei o intangível e vislumbrei o incognoscível. Tenho que agradecer por estar vivo, ter visto tudo que vi, andado por todos os lugares onde andei, navegado por mares e céus onde nenhum ser humano navegou. Grato por ter vivido tudo que vivi e por ser exatamente como sou: nem alegre, nem triste; poeta. Nem fogo, nem água; etéreo. Nem tanto a terra, nem tanto ao ar; mar. Nem busca, nem achado; encontro... em algum lugar do futuro. Inexoravelmente onde o amor aguarda... onde todo o passado esteja atrás, enterrado nalguma curva do rio. Onde alguém esteja em pé; sem medo ou culpa; chamando:



- Amor...


(R. Moran)
Fev/2012



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Para mí, solo recorrer los caminõs que tienén corazón...