Antes
de partir...
Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte,
mal algum eu temeria, porque tu estás comigo...
Agora lembro. Dos risos fáceis e puros. Do mostrar a
mancha roxa esculpida no corpo e eu rindo também porque te queria
rindo; feliz. Apesar da rudeza dos maxilares e dos entrejeitos de
boca, gostava de ver que por vezes era criança e principalmente por
que agora me lembro de levantar a cabeça do travesseiro para
observar nossos movimentos sincronizados no olhar. Gostava do dizer
nestas horas mesmo quando não dizíamos nada, apenas nos
assustávamos no mirar. De saber ou pensar em saber do quanto era
grato o querer. E quando dizíamos não eram letras que saltavam da
boca, mas sentidos sentimentos que se traduziam em algo que era amor,
ainda que fizéssemos força para negar. De tocar teus cabelos
lustrosos que me faziam pensar numa noite eterna emaranhada de
brilhos de Lua, misturando-os até que se embaraçassem entrededos em
novelos de sonhos. Depois os passos que foram dados sem que eu
pedisse; sem entreatos vazios mas intensos; para que eu acreditasse
que era possível ser; das luzes que víamos e ríamos sem que as
mãos pudessem segurar o que sequer se toca; só se sente e vive.
Agora digo. Das palavras doces e das amargas. É
preciso que eu tente de todas as maneiras dizer; é o que eu estou
fazendo; minha última tentativa. Estou tentando dizer sem conseguir,
por favor, me ajuda, senão daqui a pouco não será possível, senão
vai ser muito tarde. E é por isso que estou rouco agora. Não, não
é do som da garganta que fala que falo. É de uma outra voz, da que
vem de dentro, entende? Por favor, não ria ou se entedie julgando
pensando que me faço de vítima. Não é preciso; deixa eu te dizer
antes que eu parta ou morra, ou ambos, que partir e morrer é apenas
uma questão de vista. Ou é longitude ou profundidade.
No princípio era leve, havia leveza e era o que
querias então me bastava também. Por que então quis que se
tornasse complexo dizendo a mim que era pra sempre? Por que fazia
juras que depois negavas como quem nega a própria imagem reflexa?
Por que uma hora era poesia e na outra covardia? Não consigo
compreender como penetrei na teia sem ter consciência, sem
policiamento; eu que confiava tanto em mim e que me dizia que tudo
estava sobre controle. Para isso basta saber que cresceu dentro de
mim de um jeito totalmente insuspeitado, como lunação que transita
de nova para crescente. Era só uma pequena luz de luar, mas que em
algum momento expandiu em alguma luminescência enorme; de Lua cheia,
de estrela Ursa, maior ou menor tanto faz; e me obrigou a abrir as
janelas da alma, depois as portas; todas as portas; para então
derrubar as paredes internas do que sou e meu telhado de sonhar para
deixar que tua luz se expandisse mais do que além. Era preciso para
que crescesse livremente, eu não podia tolhê-la, compreendi a tempo
que você precisava de muito espaço livre e assim fiz, não pense
que me arrependo, apenas que para isso tive que me desfazer de toda
segurança que eram as janelas, paredes e telhado de minha casa, meu
templo que me dava guarida.
Sei então de acordar uma noite, só e nu,
abrir os olhos para um teto de espaços vazios e tocar um lugar vazio
na cama. E por não encontrar nada, procurei um cigarro, depois uma
chama e depois fumei odiando cada trago, querendo que cada um me
devorasse e me queimasse. Pois que fogo se trata com fogo. Depois me
olhar no peito e me dar conta de um simples cabo assomando, sem
floreios ou marcas que o valham. E sentir uma fria lâmina congelando
por dentro o que antes abrasava em erupção solar. Agora sei e
assusta-me a certeza súbita de que nada poderia fazer para evitar os
acontecimentos, senão aceitá-los como se aceitam tantas coisas na
vida. A morte inclusive.
Agora sangro. Não que seja visível como a luz
espraiada que se desprende do abajur enquanto desenho estas linhas. É
interno, é silencioso o sangrar... e intensamente doloroso. Verte
cálido dentro do peito; me fazendo sentir fome e sede; me entontece;
inunda órgãos e espaços interiores, ocupa todas as brechas e
frestas entreossos. O cabo retirado do peito mas a lâmina ainda
dentro; incólume e oculta de todos; maltratando e matando aos
poucos. No espanto da noite estou só e não tenho para quem gritar
minha dor. Ninguém para dizer de meu ferimento, minhas mazelas;
ninguém para compartilhar minha fome de uma alma, minha sede de
saliva, meus desencontros; ninguém para suprir a falta de amparo ou
um quilate de amor. Nem ao menos uma parede para me sustentar.
Agora choro. Por isso agora choro. Não que as lágrimas
escorram pelas faces sulcadas. São secas e quentes e não lavam ou
refrescam a alma como dizem os poetas. São lágrimas de fogo que
brotam dos olhos como estrelas cadentes e que queimam no cair tardio
dessa madrugada. E ao olhar de dentro da alma pela janela dos olhos
me vejo parado no meio do quarto olhando para fora de mim. Olhando
para fora e repetindo: onde foi que me perderam e abandonaram? Por
que o bicho-papão não saí de cima do telhado e desce para me
engolir? Talvez no seu mastigar haja lenitivo para a dor pois; ainda
que doa; doí menos do que sangrarmorrerassimaospoucos. Pelo menos
deve ser rápido, penso enquanto com a mão toco o peito e sinto o
farfalhar de uma sombra deitada rindo dizendo que não existe
bicho-papão; não para mim. Nem telhado tenho mais. Que é bom que
eu sangre para que se vingue todos que maltrataram, todos que jogaram
pedras. Terei eu jogado pedra na cruz? Mas em qual cruz? Em quantas
cruzes? Ainda assim, havia a opção de não ser por estas mãos que
sangrasse. Não precisava ser. Todas as mãos seriam bem-vindas;
pálidas, tortas; direitas ou esquerdas; negras, brancas, morenas; de
pianista ou de equilátero ferrífero; mãos de jade ou de jasmim; de
ébano ou Danúbio azul; de sombras; de cores; do lado brilhante do
dia ou do lado escuro da Lua. Mas não de mãos que tomaram meu Eu,
de mãos onde depositei pleno de esperanças minh'alma machucada para
que fosse observada, não curada. Que curar se curaria sozinha,
bastando a paciência de se esperar. Mas que a vida pode não ter
pressa, mas que a morte sim. Quando se quer a morte daquilo que
afronta os que não acreditam que – a despeito de – é possível.
Onde só se vê problemas, querências de dizer não, negação da
vida e do próprio amor. E que não ouses levantar a voz, não
queiras dizer o que sentes, pois que somos fracos e farsantes vítimas
aos olhos de. Uns pobres coitados, dignos de pena.
Por isso, antes que eu morra, parto. E lembro, digo,
sangro e choro... antes que eu parta. Para que eu não sobrecarregue
mais meus porões, para que eu não tenha lembranças a seguir-me,
para que eu estejas livre e.
Agora ergo. Os olhos para o orbe de estrelas, a boca
para o grito, o nariz para os altivos, ouvidos para os moucos, as
mãos para quem me estende. E entende ou busca. Não fracassei, ainda
que me apontes falhas. Não fraquejei, ainda que me digas batido. Se
não ousei mais não foi por querer, foi por falta de. Se não amei
mais não foi por falta de desejo, foi ausência de. Se não corro
mais é porque não vês que meu caminhar já me leva longe, distante
de. Um chamado me clama, e sei que ainda não é hora de porto
seguro. Volto ao mar, com a glória de “Glória dos mares”; meu
almirantado navio combalido de tantas lutas, de velas enfunadas e de
cara ao vento...
Enfim, os arrebóis são lindos. Passei pelo melhor de
instantâneos de vida, amei muito, naveguei por mares nunca dantes
navegados, observei cores, contemplei o intangível e vislumbrei o
incognoscível. Tenho que agradecer por estar vivo, ter visto tudo
que vi, andado por todos os lugares onde andei, navegado por mares e
céus onde nenhum ser humano navegou. Grato por ter vivido tudo que
vivi e por ser exatamente como sou: nem alegre, nem triste; poeta.
Nem fogo, nem água; etéreo. Nem tanto a terra, nem tanto ao ar;
mar. Nem busca, nem achado; encontro... em algum lugar do futuro.
Inexoravelmente onde o amor aguarda... onde todo o passado esteja
atrás, enterrado nalguma curva do rio. Onde alguém esteja em pé;
sem medo ou culpa; chamando:
-
Amor...
(R.
Moran)
Fev/2012
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Para mí, solo recorrer los caminõs que tienén corazón...