31
de Dezembro
Queria ir embora, não me deixaram
Quis fugir, esconderam o caminho
Quis um beijo, tirou o batom
Quis viver um corpo, se vestiu de noiva
Quis viver o tempo, o ano acabou.
Cleber Clark de Paiva – 1988
Réveillon
em Copacabana
É
difícil. Ano novo. Isto de começar o dia num ano e terminar a noite
já em outro, tem que se lhe diga. Caminhos e possibilidades
espreitando... sempre havendo chances de se fazer diferente. Mas
dentro do peito uma dor me oprime com peso de maciço rochoso, com
força de titânica rebentação; ressaca de ondas que batem
retumbantes pela dorsal, saltam aos olhos ébrios e repercutem pelo
cerebelo, parietal, labirinto... zonzo.
Tento descobrir onde o ano que acaba se perdeu de mim.
Tento encontrar as palavras que não foram ditas, na ordem
desnecessária de cartas ao chão, no aparato de raivas contidas e
agulhas partidas. Tento recuperar a sensatez, uma certa lógica no
caos... de horas perdidas, de passos trôpegos, de látegos de fogos,
de multidão burburijante em desalinho, de dores sustidas entre a
vida e a morte. Sangue.
Como prenúncio, digo que nesta noite viverei a minha
dor.
No vagar da memória recente, os fatos se decompõem em
estribos de cavalo, roda de carrossel. E como Ouroboros , os
acontecimentos voltando para me engolir.
Sei que cheguei até a orla depois de descer pela Santa
Clara, passar pelo Beco da fome na Barata Ribeiro com Princesa
Isabel, tomar dois uísques e uma água gasosa, e então me encontrar
com o calçadão na Av. de Nsra. de Copacabana. Vinha eufórico, meio
arlequim, meio Jack Kerouac. Estava em calor solar, em erupção de
conturbados sentimentos febris.
Dos borrões de lampejos memoriais que se seguem, vejo
luzes, cores; homem camisa branca short amarelo; ambulante cerveja;
mulher lisa de face estampas no colo; barcos de oferendas perfumadas
– O doiá, Iemanjá! – cantigas, cantos, canções; odores
de mar, olores de rosas, ervas de mar e Juana.
Sei que virias estonteante, como sempre és, a me
conduzir em pátina branca ao frio mar quente de verão. Onde também
depositaríamos esperanças, onde faríamos preces e proporíamos
promessas em tempo de novo ano. Depois de ver os fogos, juntaríamos
taças em brindes de espumante sortilégio; em gritos de réveillon.
Mas horas se passam, e nada me dizem que me tragam
você. Aos poucos arrefece o calor, e o frio se instala dentro de
mim.
Perco-me entre pessoas; pernas e braços; em um ir e
vir sem razão, a me confundir o senso direcional. Tomo tequila, bebo
uísque e sorvo álcool em diferentes formas e cores. Caminho; sou
puro instinto de sobrevivência!
Recordo-me
de ti... de um esbarrão casual – lembra-se,
casa do Vitinho em Petrópolis
– ao espetáculo de descobrimos gostos e fatos comuns. Vizinhos
bairro Laranjeiras, tardes de domingo Posto 9, Herman Hesse mostrando
o conflito entre os impulsos naturais do ser e as contenções
espirituais de sua contraparte, Fiorentina no Leme. Us
and Them e
Brain Damage
a nos embalar em sessões enfumaçadas de noites de sexta-feira no
baixo Leblon. – “ You
lock the door, and throw away the key, there's
someone in my head but it's not me...” –
Sem nunca termos nos encontrado... sem nunca termos tido percepção
da presença física a nos impulsionar para algo além. Até então...
Depois corpos suados, convulsos de gozo, o encantamento
de sermos unos, uníssonos. Dias, semanas e meses a me levarem em
doce embalo de dança. Como dentro de um poema de Pushkin, sentia-me
infinitamente feliz. E você sempre me dizendo de seu desejo de
viver, do gosto em tudo igual aos nossos melhores sonhos... e da sua
volatilidade. A efemeridade do seu querer suplantando o que se demora
para construir – relacionamento – e apenas um segundo para
destruir. E eu não querendo ver; sem ter por acreditar; acreditando
que te bastaria. Até agora...
Meus passos me levam, sem ter um porque, me fazendo
invejar a farândola de foliões e sua plumagem áurea, suas atitudes
satânicas e o riso; etílico riso; de quem não tem preocupações a
não ser viver este momento. Passagem.
Entro no Alcazar como passageiro desordenado da vida e
continuo minha sessão de exorcismo de você em sucessivos copos:
altos com gelo, baixos e puros, americanos com limão. Descubro-me
mais forte, sem medo de me contagiar penetrando na turba de
transeuntes inimigos, porque agora meu único inimigo sou eu mesmo.
A grande hora se aproxima. Há um frenesi que contagia
o ar, como um zumbido de caixa de marimbondos. Há um quê de
surrealismo no quadro que se pinta, e me faz lembrar de Apollinaire:
“Piedade para nós, que exploramos as fronteiras do irreal”: Sou
pó, sou pedra, sou o ovo de Colombo, sou espelho partido dentro do
banheiro, sou o homem gordo de pernas brancas, sou um barco veleiro
ancorado dentro de uma garrafa, sou o mar de Copacabana. E entre
tantos grãos de areia, sou um... único, entre tantos. Nunca estive
tão cercado de gente. E nunca estive tão só.
–
Cartola.
Digo e percebo que pensei em alta voz; as pessoas próximas me
olhando com o desdém concedido aos loucos e aos bêbados.
E penso que deverias vir para ver meus olhos tristonhos
e quem sabe sonhar com meus sonhos, por fim. Ou para colocar um
fim... nesta dor, nesta solidão.
Não por acaso, em meio aos desvalidos pensamentos, em
meio a este mar revolto de rostos, suores, explosões e cascatas de
fogos, vejo teu semblante. Estás linda como bem sabias. Simples em
sua beleza. Um vestido floral e um colar de contas no pescoço servem
de moldura para enaltecer sua magnificência. Mas não estás só.
Rodeada de gente jovem e bonita, despreocupadas como reflexos de teu
olhar. Olhos que quando se encontram aos meus não dizem nada. Não
há assombro, surpresa ou sinal de reconhecimento. Passam por mim
como flechas lançadas ao vento além.
Um arrepio profundo percorre meu corpo. E a seguir,
tudo em mim fica hirto, frio, pregado ao chão, num pânico mortal.
Obra de um segundo, apenas. O justo tempo de você esboçar um tímido
sorriso e resoluta caminhar em minha direção. Talvez tivesse bebido
além da conta, talvez estivesse imaginando bobagens, talvez...
- Estás perdido? Talvez devesses voltar em teus passos
e tentar se achar. – dizes com o mesmo sorriso, onde imagino
perceber algo de ironia nas entrelinhas.
Porfio que não estavas onde combináramos. Que me
deixaste sozinho. Que perambulava por horas atrás de ti. E então se
irritas, diz coisas à toa, berra, bate os pés na areia branca, como
se quisesse amedrontar meu espectro. Dizes que não era minha
propriedade, que nunca havia me prometido nada. Pois sim! Que se eu
pensava diferente, me enganava redondamente. Que queria liberdade;
livre para amar outra alma, outro corpo. Que nosso caso de amor teve
início, meio e agora... fim. Que ficavas noiva neste primeiro dia do
ano novo. Que casarias em breve. Não, não! Não nos veríamos
mais.
Me
vejo ouvindo os versos de Nelson Gonçalves: “Perto
de você eu me calo; tudo penso; nada falo. Tenho medo de chorar...”
Não sabia que razão a levava a proceder daquela
maneira. A que propósito me dizia tais coisas. Onde nosso caso de
amor teve fim. Sabia apenas da tresloucada dor perfundindo entre
minhas células, veias, músculos, ossos, mente e olhos. Até
atingirem minhas mãos. Mãos que agora olhavam com ânsia para teu
alvo pescoço... alvo de ódio. Vejo então você tão próxima e tão
distante. Distanciamento que me impele a frente.
Então dentro de mim me vejo te puxando. Um último
abraço, talvez. Mas sem ser dono de mim mesmo, vejo as mãos
deslizando sorrateiras, astutas, dissimuladas, ao que os incalculados
chamam de insensatez, os incautos de loucura e eu de tragédia
humana. Mãos que firmes vão dar a pele que une cabeça e tronco.
Mãos que nos aproximam até sentir o pouco do hálito quente que
escapa por entre teus lábios entreabertos. E que eu cuido de cobrir
com meus próprios lábios. Mãos que espremem querendo separar o
conjunto que é você. Vendo a ti com olhos saltados, surpresos,
buscando algum entendimento. Buscando um hausto de fôlego. Buscando
um grito de socorro. Que agora não pode vir, posto que é tarde. Que
buscam aceitar a fatalidade da morte, ainda que seja cedo.
Rodeados destes mares; um que é Copacabana, outro que
é o tapete vivo de corpos; e entre a balbúrdia pelo que termina e o
que começa, meu crime perpetrado não pode ser visto, ouvido ou
percebido. Somos apenas dois unidos em beijo, que senão amor, morte.
E então, fora de mim te vejo partir. Não desta para
melhor. Não para o além, fronteira do desconhecido. Mas de volta ao
grupo de jovens, que como onda, se voltam e somem no mar de alfombras
vivas. Depois do passo, fica meu peito em compasso de espera, olhando
tuas costas se perderem. Apenas dentro de mim eu te matei. Meu
desvario, minha loucura, gritando para que não morras; mas
sufocando-a, mortas está. Estático no mesmo lugar, hirto, frio,
pregado ao chão, num real pânico mortal. Sentindo lágrimas secas
escorrerem por minh'alma. Sentindo o sangue se derramando dentro de
mim. O único crime sendo ter te amado, me entregando sem aval ou
seguro que me garantisse sobrevivência.
Penso em me acabar; penso em viver outra vida, em
morrer. A vida e a morte, o universo e o tempo, e até a minha
própria existência fazem com que eu sinta vontade de me sentar e
chorar diante de um sentimento de total incapacidade. Me resta então
a angústia da leve percepção de todo um mundo que a razão não
explica, a arte vislumbra e as religiões postulam.
A
solidão, que chega com o dia que amanhece e com os garis da limpeza,
é minha eterna companheira neste primeiro dia do ano. Nada
pior do que a solidão matinal. Os loucos não estão mais loucos, os
bêbados já dormem, e as luzes e as cores da noite vão se apagando.
E não se pode gritar porque não há consolo tão cedo, e
não se pode chorar porque agora já é tarde...
É
difícil, mas vai. Ano novo. Caminho pela impossibilidade de se
chegar a algum lugar. Caminho incontinenti pela pátina branca da
praia. Garganta e coração secos, buscam a água do mar, que mesmo
salgada, luta para minimizar minha sede de amar. Agora entrego as
sombras do alvorecer meu ser resplandecente apagado, que toda noite
lhe entregava estrelas. Rogo ao Deus do amanhecer que levante-me
dentre os destroços de agulhas partidas, de cartas de amor jogadas
ao chão, pois é chegada a hora de cantar. Ajuda-me pois, Cântico
de amor, a restabelecer minha integridade, a tripudiar sobre a dor! É
verdade que o homem não se limpa de desventuras, não se lava de
sangue, não se corrige pelo ódio. É verdade!
E
talvez porque os deuses cansaram de fazer escárnio com meu sofrer,
ou simplesmente porque assim tinha de ser, sinto uma calma telúrica
me invadindo. Sinto minha prece de dor sendo atendida.
E
talvez por isso sigo caminhando, acreditando na possibilidade do
amor. Tendo a certeza de entendimento entre homem e mulher, logrado
sobre o sofrimento, sobre o sangue e sobre as agulhas partidas e
cartas perdidas.
Em
algum lugar, existe um outro amanhã. Eu sei! Um novo amor me
espreita. Penso que tenho muitas coisas a dizer; a alguém que ainda
está por vir. É preciso perder-se entre a dor para que subitamente
alguém recolha o que é nosso de direito; da rua, da praia, da
areia... e tome ternamente esse amor que cultivamos entre as mãos...
Somente então seremos verdadeiros poetas e amantes.
Sim.
Posso fazer diferente.
Neste
outro amanhã viverá o meu amor...
(R. Moran)
*inspirado em mote do amigo Cleber Clark
Participação na 31º/32º edição sentimento
do Projeto Suas Palavras
Tema: Festas
Tema: Festas
.. da
série: Coisas a dizer... para alguém que está por vir.)
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